Domingo, 15 de Março de 2015

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…é confundir a arca do dilúvio com uma pipa apocalíptica

GNR, O Paciente (Psicopátria, 1986)

 

Em debate na TVI moderado por Fátima Lopes – e com António Chagas Baptista a atacar de forma muito competente o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) –, João Malaca Casteleiro apresentou três “razões essenciais” para justificar a pertinência do instrumento em apreço: razão histórica, razão linguística e razão política. São razões facilmente rebatidas em meia dúzia de linhas: do ponto de vista histórico, a demanda do Preste João ou andar aos gambozinos (citando J. M. Casteleiro: “conseguir chegar a uma ortografia comum”) nunca significou que o reino do Preste ou os gambozinos existissem e, do ponto de vista político, está por provar o benefício para a língua portuguesa da criação em Portugal da palavra 'perspetiva' (sic), substituta da 'perspectiva' mantida no Brasil.

 

J. M. Casteleiro considera que agora existe uma “ortografia comum”. Em Outubro do ano passado, introduzi no conversor Lince do ILTEC os programas políticos dos três candidatos à presidência do Brasil e obtive, entre outros, os seguintes resultados: “aspecto convertido paraaspeto”; “concepção convertido para conceção”; “confecçõesconvertido para confeções”; “excepcionais convertido paraexcecionais”; “facções convertido para fações”; “infecciosas convertido para infeciosas”; “percepção convertido para perceção”; “perspectivaconvertido para perspetiva”; “recepção convertido para receção”; “receptiva convertido para recetiva”; “receptividade convertido pararecetividade"; “receptor convertido para recetor”; “respectivamenteconvertido para respetivamente”; “respectivas convertido pararespetivas”; “ruptura convertido para rutura”.

 

Ou seja, se quiser escrever 'aspecto', 'concepção', 'confecções', 'excepcionais', 'facções', 'infecciosas', 'percepção', 'perspectiva', 'recepção', 'receptiva', 'receptividade', 'receptor', 'respectivamente' ou 'ruptura', o AO90 não me permite tais veleidades, porque sou falante e escrevente de português europeu, mas um falante e escrevente de português do Brasil pode continuar a fazê-lo. Um dos resultados tangíveis da “ortografia comum” anunciada por J. M. Casteleiro encontra-se patente em dois textos publicados recentemente e com inegável importância política. No prefácio do livro Roteiros IX, Cavaco Silva escreve “perspetiva de ligação”, “aspetos essenciais” e “respetivos líderes políticos”. Contudo, na Mensagem ao Congresso Nacional (o documento que inaugura oficialmente o ano legislativo no Brasil), podemos ler “perspectiva de redução de custos”, “diversosaspectos da previdência complementar” e “respectivos sistemas estaduais de cultura”. Efectivamente, os próprios poderes públicos que estão na génese do AO90 demonstram a falácia da “ortografia comum”.

 

Interpelado por Chagas Baptista acerca da incongruência Egito (sic)/egípcio, J. M. Casteleiro retorquiu com um “já nós tínhamos antes, por exemplo (…), cativo sem pê, captor e captura com pê, apocalítico [sic] sem pê, apocalipse com pê”. Apocalíptico sem pê? Apocalítico (sic)? Não, não tínhamos. Como é sabido, pelo menos desde a epígrafe deste artigo, apocalítico (sic) não é um “tínhamos antes”, é um claro “temos agora, mas dispensamos”. Quanto ao 'cativo'/'captor' e 'captura' (como 'assunção' e 'assumptivo'; 'assunto' e 'assumpto', 'dicionário' e 'dicção'; 'vitória' e 'victrice'), no texto de 1945, estas grafias são consagradas, remetendo-se para a divergência “nas condições em que entraram e se fixaram no português”. Por seu turno, a Nota Explicativa do AO90 diz que a “justificação da grafia com base na pronúncia é tão nobre como aquela razão”. Não é. Aquilo que a NE do AO90 refere como “a pronúncia” não é critério de espécie alguma (quando muito, seria “a pronunciação”). Além disso, é sabido há muitos anos que as ortografias de base alfabética não pretendem captar o nível fonético da língua: aquilo que se pretende é a criação de uma abstracção útil e geral. Caso J. M. Casteleiro esteja interessado nas referências, poderei facultá-las.

 

J. M. Casteleiro considera “uma falácia” a “questão de a consoante abrir a vogal”. No entanto, ao considerar falacioso um argumento actualmente aduzido por linguistas portugueses (Ivo de Castro, Inês Duarte, Maria Raquel Delgado Martins ou António Emiliano), J. M. Casteleiro, na formulação da objecção, não deixa de acertar num aspecto: as consoantes não abrem vogais. Existem, isso sim, consoantes que impedem o seu fechamento (ou elevação). Como escrevi no Aventar, “é exactamente como uma porta que se pretenda aberta, uma cunha e uma chave: enquanto a cunha impede que a porta se feche, a chave serve para abrir a porta”. Portanto, a consoante não serve de chave, serve de cunha. Como sou autor de estudo, sujeito a arbitragem científica e publicado há cinco anos em revista universitária portuguesa, no qual me debruço justamente sobre a “função diacrítica da letra c, enquanto elemento do grafema complexo (dígrafo) ‹ac›, nos lemas em '-acção'” e desconheço, até à data, qualquer trabalho de J. M. Casteleiro que rebata cientificamente os dados nele apresentados, admito que me desagrada profundamente o aproveitamento de um programa televisivo de grande audiência para tentar convencer os telespectadores de que o Sol gira em torno da Terra.

 

Ao contrário daquilo que li em algumas intervenções no rescaldo do debate da TVI, J. M. Casteleiro não estabeleceu qualquer relação etimológica entre as palavras 'inflação' e 'acção'. De facto, se tivesse sido estabelecida uma relação etimológica entre 'inflação' e 'acção', teríamos um erro bem mais grave do que o ocorrido aquando da consideração “a questão da dupla grafia é, aliás, recorrente na história da língua portuguesa” (cf. PÚBLICO, 7/1/2010, p. 31), inopinadamente ilustrada por J. M. Casteleiro com 'olho'/'óculo', 'areia'/'arena', 'entregado'/'entregue' ou 'imprimido'/'impresso'.

 

No debate da TVI, J. M. Casteleiro refere-se a “estrutura semelhante”. Se bem entendi, subjacentes ao raciocínio 'inflação'/'acção', encontram-se quer a estrutura interna das palavras, quer as consequentes relações que entre elas se estabelecem. Assim sendo, J. M. Casteleiro referir-se-á a selecções comuns de 'inflação' e 'acção', como 'inflacionado'/'accionado', 'inflacionar'/'accionar', ou 'inflacionista'/'accionista'. Contudo, a inexistência de sequências consonânticas -cç- e -cc- em 'inflação', 'inflacionado', 'inflacionar' ou 'inflacionista' não pode servir de justificação para a supressão dessas sequências em 'acção', 'accionado', 'accionar' ou 'accionista', pois a excepção que constituem as palavras terminadas em -ação, -acionado, -acionar e -acionista com vogal oral central baixa [a] não pode determinar a descaracterização de palavras em que existem consoantes com função de marcação ortográfica de um acento: dito de outro modo, o facto de haver cinco espécies de mamíferos que põem ovos (excepção) não significa que a espécie humana deixe de pertencer à classe dos mamíferos porque, como é sabido, não põe ovos (regra).

 

A experiência de J. M. Casteleiro mostrou-lhe que “dois meses eram suficientes para substituir uma série de imagens gráficas do acordo anterior, da reforma anterior, pelo actual”. Duas perguntas: 1) a quantas formas ortográficas corresponde “uma série”?; 2) referindo-se J. M. Casteleiro a “experiência”, onde está o estudo que a fundamenta? Sentar-me-ei, aguardando serenamente.

 

Se a J. M. Casteleiro ainda restarem dúvidas quanto aos graves problemas na aplicação do AO90, convido-o a assistir ao debate em que interveio. Logo no início, a TVI identifica o contendor como António Chagas Batista (sic), em vez de António Chagas Baptista (grafia registada na página da Associação Portuguesa de Tradutores). Ora, na base XXI do AO90 (é verdade, há 21 bases), verifica-se que "para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registo legal, adote [sic] na assinatura do seu nome". Das duas, uma: ou Chagas Baptista passou a assinar Batista ou Chagas Baptista permitiu que a TVI lhe adulterasse o nome. Não se confirmando qualquer destas duas hipóteses, é inadmissível que, em nome da demanda do Preste João, valha tudo.



publicado por fmvalada às 01:08
Quarta-feira, 19 de Fevereiro de 2014

"[A] bem-aventurada Virgem Maria foi preservada intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua conceição."

Pio IX, Bulla Ineffabilis Deus DS 2803, 8 de Dezembro de 1854

 

Em Outubro do ano passado, o astrofísico Neil deGrasse Tyson irritou-se com um pormenor do filme Gravidade. O motivo da fúria foi alguém ter-se lembrado de pôr uma médica (interpretada por Sandra Bullock) a fazer a manutenção do telescópio Hubble, em vez de entregar tal tarefa a um engenheiro especializado quer na correcção de aberrações esféricas da óptica, quer na calibragem de espectrómetros e detectores, quer no estudo da cinemática e da morfologia de objectos astrofísicos compactos (chamo a atenção para a quantidade de consoantes mudas e pronunciadas que tudo isto implica).

Apesar de pontualmente se atrever a um ou outro trocadilho sobre a ortografia inglesa, creio que o novo apresentador da série Cosmos não estará minimamente preocupado com o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Imaginemos, todavia, que DeGrasse Tyson se interessava pelo processo que deu origem ao caos ortográfico actualmente instalado nas publicações oficiais e no ensino: rapidamente desconfiaria de que se tratava de mais uma obra de ficção escrita pelo argumentista doGravidade e com repetição da graçola da médica a fazer de engenheiro ou vice-versa (sim, porque no filme há um “vice-versa”).

Uma das preocupações permanentemente ausentes do espírito dos negociadores, promotores e amigos do AO90 tem sido a das consequências na leitura (e não só na escrita) da supressão de diacríticos (consoantes e acentos). Os negociadores, promotores e amigos concentraram-se em – e ficaram-se por – aspectos políticos, como a famigerada “unificação”. Curiosamente, depois de a tese da “ortografia unificada” ter caído, porque é uma falácia do tamanho da Via Láctea, agora há quem se lembre de que a “unificação”, afinal, é das regras, independentemente de uma das consequências dessa “unificação das regras” ser a criação de discrepâncias anteriormente inexistentes.

Infelizmente, já lá vai o tempo das especulações. Com a existência e a ampla difusão de textos escritos “ao abrigo” do AO90, temos material suficiente para comprovar a exactidão das previsões atempadamente feitas e a irresponsabilidade de quem as ignorou. Um exemplo recente foi dado por Maria Alzira Seixo: numa aula de Português, um aluno do ensino secundário leu em voz alta um texto que continha a frase “a conceção [sic] de Nossa Senhora foi imaculada” e pronunciou o "conceção" (sic) exactamente da mesma forma como pronunciaria "concessão". A este propósito, Maria Alzira Seixo acrescentou (e bem) que, apesar do contexto, o aluno não leu "conceição".

São conhecidas as razões que justificam uma ocorrência "conceição" em vez de "concepção". Curiosamente, também a possibilidade de uma ocorrência "conceição" em vez de "conceção" (sic) é contextualmente plausível e não só pela presença de “Nossa Senhora”. Esta idealização de um "i" depois do "e" é corroborada por um fenómeno perturbador que actualmente se começa a identificar em leitura de textos escritos “ao abrigo” do AO90: devido à supressão do "c" de directo, alguns indivíduos lêem "direito" em vez de direto (sic).

A supressão do "p" em palavras como "excepção" levará doravante quer a um aumento de ocorrências de *excessão em vez de exceção (sic), quer à necessidade de em publicações portuguesas se indicar, como já acontecia antes do AO90 em publicações brasileiras, que “'excessão' (com dois ss) constitui erro grosseiro” (vide Manual de Redação e Estilo do jornal Estado de S. Paulo), mas com um aditamento para a norma portuguesa de uma nota acerca da diferença entre "concessão" e "conceção" (sic). Sim, para a norma portuguesa. Porque, em português do Brasil, a "concepção" mantém-se imaculada: ei-la, a célebre “unificação das regras”.

Fenómenos como a capacidade de identificação rápida de palavras, a fluência de leitura e o uso do contexto ortográfico na descodificação de palavras novas passaram ao lado de quem elaborou o AO90, pois só está atento a estes fenómenos quem se debruça sobre áreas directa ou indirectamente relacionadas com a aprendizagem da leitura e não quem se dedica a ouvir o som da sua própria voz e se entretém a conceber (lá está, a concepção) leitores e escreventes ideais. Contudo, como dizem em Direito, o desconhecimento da lei não aproveita ao infractor. Exactamente, ao infractor. Convém que se enterre o AO90, para, duma vez por todas, deixarmos de te r"diretos" que passam a "direitos", "concepções" que soam a "concessões" e *excessões em vez de excepções porque passaram a exceções (sic).



publicado por fmvalada às 00:45
Domingo, 14 de Julho de 2013

A linguagem e os gestos litúrgicos pertencem ao mundo simbólico, metafórico, poético, em ruptura com a relação curta e congelada entre significante e significado.
Frei Bento Domingues O.P., PÚBLICO, 19/5/2013

 

1. Em parecer do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) sobre a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), apresentado na Assembleia da República (AR), em 21 de Março, refere-se, na “Análise aos dados da Carta Aberta ao Ministro da Educação e Ciência”, que” [o] s dados apresentados em quadro enfermam de erros graves de análise e mesmo de transcrição e não têm valor científico. Não existe qualquer anormal caos a não ser no próprio quadro”. Numa das notas do parecer, afirma-se que “estava ausente no quadro da Carta Aberta a forma sector, também permitida pelo Lince”.

Houve quem tivesse a gentileza de me chamar a atenção para a probabilidade das prolações ‘se[k]torial’ e ‘se[k]toriais’ lincedo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, em discurso proferido no passado dia 3 de Maio. Fui ouvir o discurso, verifiquei as prolações, confirmei-as, registei-as e arquivei-as. Entretanto, depois de encontrar a versão oficial do discurso, disponível no Portal do Governo e redigida numa mistura da norma de 45 e da proposta de 90 (fruto dessa recorrente e inútil tentativa de converter uma escrita estabilizada num registo aventureiro), criei um ficheiro de texto, entreguei-o ao conversor Lince (adoptado pela Resolução do Conselho de Ministros n.° 8/2011) e obtive 20 alterações, entre as quais, sector > setor (cinco vezes) e sectores > setores (uma vez). O ‘sectorial’ e os ‘sectoriais’ sobreviveram ao ataque do Lince.

A dupla grafia sector/setor, prescrita pelo A090 (base IV) e atestada, tal como sectorial/setorial, pelo Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) do ILTEC, é desrespeitada nas conversões do Lince. Isto é, ao contrário do que se escreve no parecer do ILTEC, “a forma sector” não é permitida pelo Lince, coisíssima nenhuma, como diria o dr. Vítor Gaspar, se sobre este assunto se pronunciasse.

2. É sempre lamentável que um Parlamento aprove um diploma, quando existem pareceres qualificados a recomendar a suspensão do processo em curso. Quando um Parlamento dá mostras de não saber aplicar aquilo que aprovou, confirmam-se os receios de que os pareceres resgatados a uma gaveta deram entrada imediata noutra. O recente projeto [sic] de Lei n.° 278/XII, relativo à *co-adoção de crianças por casais do mesmo sexo, provocou uma chuva de *co-adoções na imprensa que se rendeu ao A090 e deu origem, inclusive, ao Grupo de Trabalho – Co-adoção, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República.

Por incrível que possa parecer, o A090 não se resume à base IV: tem 21 bases e é escusado irem ao VOP do ILTEC, em busca da solução – trata-se de novidade, compreensivelmente ainda por atestar. Entretanto, a *co-adoção vai fazendo os seus estragos e a base XVI do AO90, embora aprovada pelo Parlamento, só servirá para inglês ver.

3. Há alguns meses, assisti a dois actos de curiosa contenda, nas páginas do PÚBLICO, em torno de disparidades criadas pelo A090. Maria Regina Rocha (19/1/2013) e Jorge Candeias (25/2/2013) atribuíram aos números o papel principal e enfeitaram o pano de fundo com o Vocabulário de Mudança (VdM) do ILTEC. Continuo a considerar improfícua qualquer exposição sobre o AO90, com base em totais, proporções ou percentagens e comparações entre Portugal, o Brasil ou a Cochinchina, sem ter em conta a falta de base científica do A090, a geração de instabilidade ortográfica e o impacto negativo produzido pelas alterações.

Mais improfícuo se torna esse exercício, quando o ILTEC, além de alegar eventuais inconsistências no Vocabulário daPÚBLICO Academia Brasileira de Letras (ABL), propõe grafias não aceites pela ABL (‘baptismo’, ‘baptista’) e não considera palavras afectadas pelo A090 (‘protracção’), presentes quer no Vocabulário da ABL (protracção/protração), quer no mais recente Vocabulário publicado pela Academia das Ciências de Lisboa (protração), entidade que, se bem me lembro e, se estiver desactualizado, por favor, corrijam-me, ainda é o órgão consultivo do Governo português em matéria linguística.

Em alguns lemas do VdM, surge a indicação de duas grafias, com uma delas a ser objecto de etiqueta “não é usado em Portugal” (e.g., ‘afectar’, ‘idiolecto’, ‘factura’, ‘tecto’). Contudo, apesar do acolhimento dessas grafias no Vocabulário da ABL, não há atestação em dicionários brasileiros de referência, como o Houaiss (edição de 2009). Convém verificar “eventuais inconsistências”, antes de se partir para cálculos correctos e rigoroso: sobre divergências e convergências.

Convém igualmente reflectir sobre a dimensão desagregadora do exercício AC considerando os inúmeros casos em que Brasil se conserva a grafia anteriormente comum, passando em Portugal a adoptar -se uma grafia obscura e exclusiva, como em acepção > aceção, concepção > conceçâ confecção > confeção, contracepção > contraceção, decepção > deceção, intercept > interceção, percepção > perceção, peremptório > perentório, prospecção > prospeção, recepção > receção ou ruptura > rutura.

Em 1999, Ernesto d’Andrade e Maria do Céu Viana escreviam: “É hábito estabelecer- se uma diferença entre a forma comum em português ‘rotura’ e a forma erudita ‘ruptura’ (…) Note-se que se entrasse em vigor o “Acordo Ortográfico” de 1990 (…] teríamos mais uma variante (‘rutura’) que nos parece injustificada”. É verdade, ei-la, a rutura (sic), exclusivamente em Portugal

Antes que alguém enverede pela lengalenga da “dupla grafia” anterior ao AO90, “ruptura” e “rotura” não são “grafias duplas”: são palavras homófonas (em português europeu), com a nominalização; de um mesmo verbo (‘romper’) a ser feita através de vocábulos diferentes, havendo aparente consenso quanto às respectivas acepções – “rotura” incide sobre um objecto físico (“rotura de ligamentos ou “carga de rotura”), enquanto “ruptura” diz respeito à interrupção da continuidade de uma situação (como na citação de Frei Bento Domingues, em epígrafe).

Quanto a grafias múltiplas, considere-se a “electroóptica”. Segundo o VdM, antes do AO90, havia duas grafias: “electroóptica’ (comum a Portugal e Brasil) e “eletroóptica (apenas no Brasil). Com o A090, além de Portugal e Brasil deixarem de ter grafia comum, passa a haver três grafias: em Portugal, “eletro-ótica”; no Brasil, “eletro- óptica” e “electro-óptica”. É evidente que acentos agudos e circunflexos complicariam tudo. Se quiserem um espectáculo digno de registo, consultem o VdM e dêem uma espreitadela a “espectrofotómetro” e “espectrómetro”.

No passado dia 31 de Janeiro, na AR, durante audiência concedida à Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico, o deputado Luís Fazenda garantiu que “ficarmos com três grafias (…) é absolutamente insustentável, não faz sentido nenhum, é de uma ilogicidade total”. Pergunto ao senhor deputado Luís Fazenda e a todos os responsáveis políticos portugueses: estamos todos exactamente à espera de quê, para se acabar, duma vez por todas, com esta coisa insustentável?



publicado por fmvalada às 00:54
Terça-feira, 13 de Novembro de 2012

A palynodia ja canto.

Camões

 

Qual será a razão para um escrevente, falante de português europeu e utilizador, por imitação, por gosto ou por imposição, do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) não grafar o C de facto? Por exemplo: "união de fato". Sim, de fato. Quem diz "união de fato", poderá também dizer "pressupostos de fato e de direito", "alterações de fato e de direito", "razões de fato e de direito", "fundamentos de fato e de direito" ou "situações de fato...". E de direito. De fato e de direito. Até mesmo "fatos imputáveis". Qual o motivo para "tempo médio de contato", "contatos e horários de atendimento", "ajustamentos sem impatos" ou "impato praticamente nulo"? Em suma, qual a causa desta aversão a facto, contacto e impacto? Em meu entender, tais supressões consonânticas poderão explicar-se por o escrevente:

a) julgar que, ao abrigo da base IV do AO90, as consoantes C e P, quando em posição pós-vocálica e em final de sílaba, serão sempre suprimidas, independentemente de se pronunciarem ou não: se FACto, então, FAto, se conTACto, então, conTAto, se imPACto, então, imPAto;

b) acreditar que, ao abrigo do AO90, deve seguir sempre a prática brasileira (fato, contato) ou aquela que erradamente julga ser a prática brasileira (*impato);

c) admitir que, em português europeu, as consoantes C e P, nas condições mencionadas em a), não se pronunciam e, seguindo o "critério fonético (ou da pronúncia)" da base IV do AO90, não as grafa.

Estas hipóteses poderão ser o reflexo quer da confusão criada pela Nota Explicativa do AO90, ao contemplar "facto e fato" e deixar o fardo dum esclarecimento "tanto quanto possível" aos "dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia", quer da forma como o Poder se deixou enredar em equívocos, prescindindo da agradável leitura dos pareceres que solicitou e mandando aplicar o AO90, em vez de previamente tentar percebê-lo.

É importante sublinhar que a fonte, ou o poço, destes fatos, contatos eimpatos não é um papelucho capaz de deixar Carlos da Maia num espanto furioso e mudo. Estes fatos, contatos e impatos não são excessos de palhada encomendada a foliculário, por isso, mais imóveis entre as acácias nos deixam. Estão inscritos no Diário da República(DR), que tenta, desde 1/1/2012 e de forma atabalhoada, adoptar o AO90, não tendo a desastrosa experiência de 21/7/2010 servido de exemplo: uma fuga para a frente do conselho de administração do Banco de Portugal, que decidiu arriscar uma redacção AO90 do Relatório e Contas de 2009, com um amargo bónus de cinco impato e um impatos.

Ao contrário dos impatos, as ocorrências de fatos e de contatos têm sido frequentes no DR desde o início do ano. Estas ocorrências não são comparáveis, nem em número, nem em tipologia, a situações análogas anteriores à adopção do AO90. Aliás, considerando ocorrências, episódicas e com longos intervalos, antes de 1/1/2012 (gralhas, comocontato em vez de contrato) e não haver memória de qualquer período com tal torrente de fatos em vez de factos, confirma-se que o AO90 veio perturbar de forma abrupta e desnecessária a escrita em português europeu, com consequências que podem ir além do plano escrito e com a agravante de um dos principais vectores ser o jornal oficial da República Portuguesa.

À ambiguidade da Nota Explicativa do AO90, juntou-se o coro institucional dos fatos. É possível que quem redige os actos publicados no DR, convencido da omnisciência daqueles que mandam, tenha partido do princípio de que quem tão diligentemente considera o AO90 um projecto essencial para a "unidade essencial da língua" tem a mínima ideia daquilo que está a defender. Depois de José António Pinto Ribeiro confessar que "Ato [sic] jurídico é fácil, agora "fato" em vez de "facto"..." (Diário Económico, 6/2/2010), de Gabriela Canavilhas estar convencida de que "daqui a dez anos ainda estou a escrever facto com cê" (Assembleia da República, 21/12/2009) e de Pedro Santana Lopes asseverar que "Agora "facto" é igual a fato (de roupa)" (Sol, 10/2/2012), era previsível uma enxurrada de "situações de fato e de direito". Na redacção do DR, mas não só. Pode apreciar-se uma amostra, não só de fatos, mas também de contatos, impatos e afins, em colectânea organizada por João Roque Dias, com dados que merecem atenção, selecção e análise, pois reflectem o que actualmente se passa na escrita em português que por aí circula.

Não é segredo que o conhecimento ortográfico, fruto duma aprendizagem feita ao longo de anos de leitura e de escrita, influi na percepção dos "sons da fala". Felizmente, sobre este tema existem publicações académicas redigidas em várias línguas, inclusive em português europeu. É igualmente sabido que a relação entre grafemas e fonemas não é o único factor a ter em conta quando se discorre sobre o plano grafémico ou, noutros termos, sobre ortografias de base alfabética. Contudo, os responsáveis pelo AO90, uns por desconhecimento, outros por desinteresse, nunca se preocuparam com estes aspectos fulcrais nos debates actuais sobre um tema cuja dimensão política toldou aquilo que verdadeiramente interessa. Como se perceberá da pequena amostra que apresentei, a base IV do AO90 veio perturbar inutilmente a estabilidade ortográfica do português europeu, pondo em causa os efeitos dos anteriores processos de sistematização. Contudo, não parece que quem manda esteja particularmente inquieto com o caos que instalou e para o qual contribui activamente na escrita e passivamente na procura de solução.

Por acção de quem pretendeu simplificar aquilo que, por definição, é complexo, passámos (e continuaremos) a ter escreventes perdidos na terra de ninguém entre planos diferentes da língua, indecisos diante duma consoante que não sabem se hão-de grafar, porque não sabem se a pronunciam, desnorteados por a memória gráfica não servir de amparo e completamente dependentes de recursos em permanente actualização e sem critério para uma fixação digna desse nome.

É a quem pela "unidade essencial da língua" se esquece de admitir que a pôs em causa com factores de desunião, como aspectos e aspetos,recepções e receções, infecções e infeções, contraceptivos econtracetivos, rupturas e ruturas, a quem decidiu perturbar a estabilidade do actual português europeu escrito, permitindo o enxerto de fatos, contatos e impatos, que se deve exigir quanto antes a anulação deste lamentável processo. Dêem o feito por não feito, cantem a palinódia. Pela retratação, é perceptível que o impacto está longe de ser nulo. A retractação é acto digno e responsável. O AO90 não é um facto consumado, é tão-somente um fato que não serve. Devolva-se ao alfaiate.



publicado por fmvalada às 00:58
Sábado, 11 de Agosto de 2012

A experiência universal todos os dias nos confirma a velha parêmia de que a pressa é inimiga da perfeição. Pudera eu acrescentar que é mãe do tumulto, da incongruência, da irreflexão e do êrro.

Rui Barbosa, Obras Completas, volume XXIX, tomo II, 1902, p. 71

 

1. No blogue Causa Nossa, em rubrica a que poderíamos chamar Um pouco mais/menos de..., sff, Vital Moreira debruça-se, numa óptica crítica, sobre notícias de órgãos de comunicação social e aspectos da vida pública, tendo em conta determinados parâmetros: decoro, consistência, seriedade, verdade, cuidado, decência, coerência, pudor, objectividade, rigor, etc. No Causa Nossa, em 21/7/2008 e a propósito de notícia sobre a "promulgação" do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) pelo Presidente da República, Vital Moreira esclarecia que "os tratados internacionais são ratificados pelo PR (e não "promulgados") depois de aprovados pela AR (e não "ratificados")". Rematava Vital Moreira: "Custará assim tanto aos media ter um consultor ou revisor jurídico, para não incorrerem em tantos erros?" Pergunta pertinente. Mas já lá vamos.

2. Há cerca de quatro anos, segundo a Lusa, Carlos Reis invocou os nomes de Vital Moreira e Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo que estes eram "a favor das alterações ortográficas". Não sei se Carlos Reis terá lido o excelente artigo de José de Faria Costa e Francisco Ferreira de Almeida, professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC), no Diário de Notícias de 13/2/2012. Se não leu, aconselho vivamente a leitura, pois é um texto que merece toda a atenção.

Afirmam José de Faria Costa e Francisco Ferreira de Almeida que a alteração parcial da redacção do AO90, através do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, fez "letra morta" do n.º 4 do art. 24.º da Convenção de Viena sobre os Tratados, de 23/5/1969, "que considera obrigatórias, desde a adopção do texto, as cláusulas relativas às modalidades da entrada em vigor" e, bem mais grave, que tal alteração "consubstanciou justamente um acto (concertado!) que malogrou, sem apelo nem agravo, o objecto e a finalidade do tratado". Vale a pena ler a robusta e consistente argumentação jurídica e ter bem presente o cristalino "em vigor, mas como?" dos Autores.

Enquanto, neste preciso momento e depois de ter lido o parágrafo anterior, um decisor político se prepara para estudar cuidadosamente o parecer de Faria Costa e Ferreira de Almeida, vejamos aquilo que actualmente consta da legislação portuguesa em matéria de entrada em vigor do AO90 e que, aviso de antemão, desrespeita a doutrina acima mencionada, ou seja, a legislação poderá correr o risco de se tornar obsoleta a breve trecho: no Aviso n.º 255/2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros (DR, 17/9/2010) e na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 (DR, 25/1/2011), lê-se que o AO90 entrou em vigor em Portugal em 13 de Maio de 2009.

Em 9/2/2012, na qualidade de deputado ao Parlamento Europeu e ao abrigo do Artigo 117.º do respectivo Regimento, Vital Moreira fez uma pergunta com pedido de resposta escrita à Comissão Europeia. Nessa pergunta (actualizada em 27/2/2012), segundo o deputado ao Parlamento Europeu (e professor associado da Faculdade de Direito da UC), o AO90 entrou em vigor em "janeiro [sic] de 2009". À pergunta de Faria Costa e Ferreira de Almeida "em vigor, mas como?", acrescento outra: em Janeiro, porquê, professor Vital Moreira?

3. Em vídeo da UCV (televisão web da UC), de 4/1/2011, Ana Teresa Peixinho, professora da Faculdade de Letras da UC, declarou que as pessoas iriam "começar a ver a escrita de outra forma". Ao deparar-me, na página da Internet da Faculdade de Direito da UC, com o "contato [sic] oficial" de dois membros do corpo docente, comecei "a ver a escrita de outra forma", de uma forma que não é nem português europeu, nem criação AO90, mas português do Brasil.

Recomendo a Ana Teresa Peixinho que tenha este contato em mente, antes de repetir que "o período de seis anos de transição é um período extremamente longo, demasiadamente longo; isto poderia ter sido tudo feito de uma forma muito mais rápida, muito mais célere e muito mais prática". Imagine-se se tivesse sido. Metade do período de transição já lá vai e o caos anda por aí. Sim, por aí. A óptima notícia é esta: a suspensão do AO90 devolverá intactos os contactos perdidos.



publicado por fmvalada às 01:00
Terça-feira, 26 de Junho de 2012

Independentemente do carácter consuetudinário ou prescritivo duma (orto)grafia de base alfabética, a atenção dedicada à estabilidade da sua estrutura deve constituir uma das tarefas primordiais duma sociedade alfabetizada e grafocêntrica. Modificações em aspectos essenciais do padrão ortográfico acarretam várias e indesejadas consequências, sendo a banalização do caos um dos desfechos mais óbvios e um dos aspectos mais infelizes de abruptas, incorrectas e injustificadas alterações. Escusado seria dizer-se que o recente surgimento duma prevista e específica tipologia de erros é um desenlace provocado por o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) ainda não ter sido nem suspenso, como em devida altura foi recomendado por pareceres científicos imparciais que o Estado português solicitou, nem objecto de "diagnóstico relativo aos constrangimentos" detectados na sua aplicação, como se pode ler em recente documento político que contém a assinatura de Nuno Crato, o actual ministro da Educação e da Ciência.

Quando o caos ortográfico se instala em documentos do Estado (ou de instituições que de alguma forma dele dependem) e as deficiências na produção textual se generalizam, a capacidade de expressão escrita de Portugal corre o risco de ser profundamente afectada. Neste artigo, sublinho a absurda persistência do caos na produção escrita de quem promove a urgência na adopção do AO90, ministra acções de formação sobre o mesmo e assume a incumbência de definir critérios de correcção e de emitir pareceres sobre a Prova Escrita de Português do 12.º Ano na primeira fase dos Exames Nacionais do Ensino Secundário de 2012.

Já em Junho de 2011, num parecer sobre a prova de exame de Língua Portuguesa do 12.º ano de escolaridade (1.ª fase)*, a Associação de Professores de Português (APP) demonstrara falta de cuidado na redacção e revisão dum documento sucinto, em que o caos se instalara através da adopção duma grafia formada por mistura aparentemente aleatória das ortografias de 1945 e de 1990: selecionados, objetiva,redação, atual, caráter e subjetivo; objecto, correcção, Direcção (duas vezes) e Junho. Apreciando outro aspecto, distinga-se "Fernando pessoa [sic]" e "o facto da questão 4 não ser", em vez de "o facto de a questão 4 não ser".

No documento Parecer e critérios de correcção da APP do exame de Português do 12.º ano **, publicado durante este mês, esclarece-se, nos critérios de correcção do Grupo III, que "o aluno será avaliado pela (....) produção de um discurso correto [sic] nos planos lexical, morfológico, sintático [sic], ortográfico e de pontuação". Mais à frente, no "comentário à prova", informa-se que o enunciado "está de acordo com os conteúdos programáticos selecionados [sic] pela tutela como objecto de avaliação" e que, no "I Grupo (A), é apresentado um excerto de "Os Lusíadas", (analisado em aula), com questões claras e objetivas [sic]".

Parênteses entre vírgulas à parte, é inconcebível que a APP simultaneamente reitere os critérios de classificação da tutela sobre a avaliação da produção de um discurso correcto no plano ortográfico e produza um discurso ortograficamente incorrecto através da coexistência no mesmo texto de objetivo e objecto. Não menos digno de menção é o contra-senso de Edviges Ferreira, presidente da APP, ao manifestar vontade de "penalizar os seus alunos que escreverem com a antiga grafia" (como lembrei no PÚBLICO de 24/11/2011), quando a sua própria direcção não consegue escrever com a "nova grafia" e adopta uma terceira, misturando as outras duas.

Em 17/8/2011, informava a Lusa que, segundo a presidente da APP, as "confusões" seriam evitadas com os livros de apoio, as acções de formação e um conversor ortográfico. Dez meses depois, percebe-se que nem a meia hora vaticinada pelo antecessor de Edviges Ferreira, nem os livros, nem o conversor, nem as acções de formação evitam confusões. Não é com operações cosméticas, como a recentemente feita no "comentário à prova", com a supressão do cê de "objecto" ***, mas sem uma nota a indicar a alteração, que se promove a "produção de um discurso correcto" no plano ortográfico. Este acto apenas vem confirmar que só a imediata suspensão do AO90 levará ao fim das "confusões" e deste espectáculo caótico a que actualmente se assiste.



publicado por fmvalada às 01:02
Sábado, 05 de Maio de 2012


Escrever-se hão iniciaes maiúsculas em meio de períodos ou orações gramaticais, nos seguintes casos (…) f) Nomes dos meses 

Diário do Governo n.º 213, 12 de Setembro de 1911, p. 3850 

 

1. Em 1903, no prefácio de Portugais • phonétique et phonologie • morphologie • textes, advertia Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, acerca dos escritos que encerram a obra: “Les lecteurs seront surpris de rencontrer dans les textes des contradictions et des irrégularités orthographiques. J’ai gardé l’orthographe de chaque écrivain, à fin de mettre sous leurs yeux l’état anarchique où elle se trouve”.  Surpreendido  ficaria decerto Gonçalves Viana se pudesse apreciar as actuais contradições e o actual estado anárquico da ortografia portuguesa, passados mais de cento e nove anos sobre aquelas linhas e quase cento e um anos sobre a entrada em vigor da “sua” reforma.

 

Mais surpreendido ficaria se lhe contassem que a causa do regresso às contradições e irregularidades fora uma reforma disfarçada de acordo. Soubera ainda Gonçalves Viana que o próprio Estado promotor desse acordo era dos primeiros a dar exemplos claros da anarquia ortográfica (ou “mixórdia acordesa”, como prudentemente lhe chamou António Emiliano, no PÚBLICO de 19/4/2012) e ficaria decerto com o semblante carregado de estupefacção.

 

Ao abrirmos a página da Internet do Governo português, duas setas ajudam-nos a folhear cinco imagens, correspondendo a maioria destas a uma fotografia do primeiro-ministro, só ou acompanhado, com uma citação alusiva à actualidade. Por debaixo deste pequeno álbum, surge uma rubrica intitulada “em destaque”, imediatamente seguida pelo repositório que despertará o nosso interesse, composto por duas ligações: uma à esquerda, a outra à direita. A da esquerda é uma recomendação: “mantenha-se atualizado [sic]”. Resolvamo-la de uma penada, ignorando serenamente o seu conteúdo, tão serenamente como o Estado ignorou o recheio dos pareceres de Ivo Castro, Inês Duarte e Maria Helena Mira Mateus, e concentremo-nos na ligação da direita: “documentos oficiais”.

 

Quando um documento obtém chancela oficial, sabemos que não se trata nem de gatafunhos rabiscados num rascunho, nem de documento de sessão, nem de roteiro de um trabalho em curso. Sendo oficial, representa a peremptória palavra do Poder. Sendo oficial, é solene e sério. Dos documentos oficiais disponíveis na ligação mencionada, debrucemo-nos apenas na Resolução da CPLP sobre a Situação na Guiné-Bissau (doravante, Resolução), assinada em Lisboa, em 14/4/2012. O estatuto oficial deste documento, remate de um mosaico composto por textos desastrosos do ponto de vista ortográfico (recordo que, em Portugal, quem define a ortografia é o Estado), demonstra que os conceitos heterografia, mixórdia ortográfica e estado de anarquia ortográfica infectaram a grafia oficial. Em teoria, previra-se esta situação com o texto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Na prática, o relatório do Orçamento do Estado para 2012 demonstrara-a. Entretanto, o Diário da República e o Governo, cada um com o seu padrão específico, têm vindo a vulgarizá-la.

 

A Resolução é a nova referência da crónica inaplicabilidade do AO90 e a prova da imperiosa necessidade, no mínimo, da sua suspensão até chegar o “diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação”, assumido como necessário pela própria CPLP na Declaração de Luanda de 30/3/2012. A CPLP não é uma entidade abstracta. Uma das assinaturas que constam desse documento é a de Nuno Crato, ministro da Educação e Ciência da República Portuguesa. A relevante observação de Nuno Pacheco, no PÚBLICO de 22/4/2012 (“Abril escreve-se hoje abril, com caixa baixa, já repararam?”), chegou tarde de mais. As três ocorrências de “Abril” na Resolução são mais uma prova do carácter supérfluo da base XIX, 1.º, b) para a tal “unidade essencial da língua”, pois ninguém na CPLP se apoquentou com a maiúscula inicial.  A base XIX, 1.º, b) é efectivamente desnecessária.

 

Quanto mais o Estado adia a suspensão e o “ajustamento”, mais se prolonga este triste espectáculo da descredibilização da língua portuguesa, da desregrada coexistência de duas grafias no mesmo texto (“sector” e “setor”, como acontece na Resolução) e do paradoxo de o Estado português exigir que “serviços, organismos e entidades” se convertam a uma norma que ele próprio não domina, apesar de a ter criado.

 

2. Vindo “Abril” a talhe de foice, e agradecendo publicamente o mote a Fernando Venâncio e a Ivo Miguel Barroso, recordo uma conjectura de Edite Estrela, Maria José Leitão e Maria Almira Soares (em manual que mencionei no PÚBLICO de 29/2/2012): “qualquer estudo diacrónico pode concluir que não há uma tradição ortográfica na língua portuguesa”. Este postulado merece a minha categórica objecção: existe uma tradição doutrinária e, no que aos nomes dos meses com maiúsculas iniciais diz respeito, a tradição é perceptível e está enraizada nas mais venturosas empresas de sistematização da ortografia portuguesa (Madureira Feijó), no estabelecimento de directrizes para uma norma ortográfica (Bluteau), na fundação da lexicografia moderna do português (Morais Silva) e nos preceitos ortográficos de 1911 e 1945.

 

Esta tradição é interrompida, de forma abrupta, injustificada e oficial, pelo AO90. Apesar de autores do século XIX e do início do século XX usarem minúsculas iniciais nos nomes dos meses, de a publicação de dicionários no século XIX ter sido transferida para Paris e de em França (onde Abril é avril) se encontrarem então os “mais operosos dicionaristas portugueses, em condições de alargado contacto com a lexicografia estrangeira e de inevitáveis influências sobretudo francesas”, como recorda Telmo Verdelho, em Dicionários portugueses, breve história (texto disponível no sítio do Corpus Lexicográfico do Português — U. Aveiro e U. Lisboa), na hora da verdade, não se adoptaram as minúsculas iniciais nos nomes dos meses.

 

Tanto assim é que, apesar de no opúsculo Ortografia Nacional (1904) Gonçalves Viana recorrer às minúsculas iniciais nos nomes dos meses e de o Diário do Governo adoptar essa grafia, a Comissão de 1911 viria a consolidar a tradição, sendo clara no princípio que surge em epígrafe. Não basta dizer-se que a tradição não existe, é preciso provar a sua inexistência. Em português europeu, Abril não é abril. Em português europeu, Abril é Abril. Sempre.


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publicado por fmvalada às 10:51
Terça-feira, 06 de Março de 2012

v. http://issuu.com/roquedias/docs/fmv_odiabo_1836_pp12_13-1/1

 

“O Acordo Ortográfico é um disparate científico” , O Diabo, 6/3/2012, pp. 12-13.

 

DUARTE BRANQUINHO

Agora que começa a entrar em casa dos portugueses, o Acordo Ortográfico (AO) está a gerar cada vez mais polémica e começa a levantar-se uma oposição crescente. Francisco Miguel Valada é intérprete de conferência em instituições comunitárias e reside em Bruxelas. Tem denunciado o AO em vários debates e artigos publicados na imprensa e é autor do livro “Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico”. O DIABO entrevistou-o.

 

 

O DIABO – O que o mo­tivou a escrever um livro contra o Acordo Ortográfico (AO)?

Francisco Miguel Valada – Motivos exclusivamente lin­guísticos. O AO é um disparate científico, uma precipitação. O AO é uma teoria que não foi aceite pela comunidade cientí­fica. Acontece a muitas teorias. Mas esta teve direito a tapete vermelho. Por si só, esse motivo basta para o AO ser suspenso. A única entidade que não ma­nifestou reservas quanto à apli­cação do AO foi a Academia das Ciências de Lisboa (ACL). A ACL é o órgão consultivo do Governo em matéria linguística e foi a responsável pelo projecto AO em nome do Estado portu­guês. Agora, pense numa obra pública. Quem foi o responsável pela construção da ponte inter­nacional do Guadiana, um pro­jecto internacional? O LNEC? Não. O LNEC emite pareceres e faz estudos. A quem foi ad­judicado o projecto da ponte, ao LNEC? Claro que não. Foi a uma empresa espanhola e à Teixeira Duarte. Imagine que o Estado português decidia con­sultar diversas entidades, a Tei­xeira Duarte tecia loas à ponte e o LNEC sugeria a imediata interrupção do projecto, porque detectara problemas estruturais. Algum dos responsáveis políti­cos deste país que defendem o AO defenderia a construção da ponte? Não creio. Mas defen­dem o AO, sem perceberem os enganos do processo, sem terem lido os pareceres, enfim, muitos sem terem lido o próprio AO.

 

O seu livro teve boa re­cepção?

O livro deu o seu contri­buto na tentativa de chamar a atenção para um problema que muita gente teima em de­fender sem ler o AO. E através do livro, pelo menos, consegui que algumas pessoas que me disseram ser, em princípio, a favor do AO declarassem publi­camente a mudança de opinião. A estabilidade de uma norma ortográfica não se põe em cau­sa com argumentos falaciosos. Estas três dúvidas têm exacta­mente o mesmo valor: “como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que concep­ção tem pê mudo e correcção tem cê mudo?”, “como é que um jovem de 15-16 anos pode compreender que Sócrates foi mestre de Platão e que Platão foi mestre de Aristóteles?” ou “como é que um homem de 39 anos pode compreender que Borges Coutinho foi presiden­te do Benfica , João Moutinho joga no FCPorto e José Mouri­nho treina o Real Madrid?”. A resposta que os autores do AO dão à primeira dúvida posso dar eu às duas outras: “à custa de um enorme esforço de me­morização”. E qual é o valor da minha resposta? Zero. Onde está a prova da minha respos­ta? Nenhures. Qual a reacção do poder? Fuga para a frente. António Caeiro traduziu para português a Ética a Nicómaco, de Aristóteles. Quem quiser sa­ber o valor de uma fuga para a frente, encontra-o na página 86, se não me engano.

 

Acha que a questão do AO passou ao lado dos por­tugueses?

Passou evidentemente ao lado dos portugueses. A prova disso são políticos que utilizam a norma europeia do português e que estão directamente liga­dos à promoção do AO. Pedro Santana Lopes foi quem assinou o acordo ortográfico, em 1990, e em 2012 continua a achar que facto passa a fato; o cidadão Pinto Ribeiro, meses depois de deixar de andar a promover o AO na qualidade de ministro, dizia que «Ato [sic] jurídico é fácil, agora “fato” em vez de “facto”...»; Gabriela Canavi­lhas, em estreia na Assembleia da República, para além de di­zer que o debate ficara lá para trás, disse que se calhar daqui a uns anos ainda escreveria facto com cê. São um núcleo duro, o “grupo do fato”. Se o AO passou ao lado de quem o decidiu, parece-me ainda mais evidente que passou ao lado dos outros portugueses.

 

Mas parece que agora muitos estão a despertar...

Porque deixou de ser um problema teórico, uma mera possibilidade, para afectar o dia-a-dia das pessoas. Os autores do AO esqueceram-se de que a sociedade portuguesa é grafo­cêntrica. Temos palavra escrita por tudo quanto é sítio. Vera Curiel, minha colega, duran­te a apresentação que António Emiliano fez do meu livro em Lisboa, disse que a morte do AO aconteceria quando este come­çasse a ser aplicado. Nunca dese­jei que este momento chegasse, mas chegou. Esperemos que a profecia se concretize.

 

Como comenta as atitu­des de Vasco Graça Moura e de Mota Amaral?

Com uma ovação de pé. Os três deputados do PSD-Açores vão ao âmago da questão e têm toda a razão quando falam em “degradação da escrita da língua portuguesa”. Acho interessantes as reacções de determinadas pes­soas relativamente à louvável ati­tude de Vasco Graça Moura. Não ouvi essas pessoas pronunciarem-se sobre os pareceres da consulta que o Instituto Camões (sob tu­tela do MNE) levou a cabo em finais de 2005 e que estiveram a acumular bolor numa gaveta. Proponho que se pergunte aos deputados que votaram favora­velmente o 2.º Protocolo Modi­ficativo se leram esses pareceres, em que os professores Ivo Castro e Inês Duarte recomendavam que este não fosse votado e que o processo do AO fosse suspenso… Note-se que o último parecer chegou ao destino em meados de 2006 e só por iniciativa da deputada Zita Seabra é que os pa­receres foram tornados públicos, em 2008, quando o 2.º Protocolo Modificativo foi votado. Como Vasco Graça Moura leu esses pareceres, é natural que tenha feito o que fez. Outra atitude seria impensável.

 

E as recentes declarações de Francisco José Viegas?

Percebeu as consequências negativas do AO. Aliás, essa per­cepção não é inédita. O actual secretário de Estado da Cultura já tinha aludido a essa hipótese em Outubro do ano passado. As pessoas esquecem-se de que a pas­ta da Cultura está na dependência directa do primeiro-ministro e que não é o cidadão Francisco José Viegas quem está a manifestar opi­nião. Agora, o Governo, depois de demonstrar sensatez, tem de assumir rapidamente uma posi­ção, dizer quais são as alterações que tem em mente, suspender a aplicação do AO e impedir o desastre completo. Não nos pode­mos dar ao luxo de deixar arrastar este dossier. Deve evitar-se a todo o custo esta fragmentação a que actualmente assistimos. Já se viu que o AO é uma caixa de Pandora ortográfica. Logo, o dossier deve ser imediatamente encerrado.

 

O actual Governo tem vários membros que se dis­seram contra o AO, mas no entanto não o suspendeu. Porquê?

Porque foi apanhado a meio do processo, com uma Reso­lução completamente abstrusa nos braços. Contudo, deste Go­verno, a única coisa que espero é que suspenda este processo e que devolva o AO à proce­dência. Não há um único argu­mento técnico válido a favor do AO. Se me disserem que o AO é uma questão política, pergunto então por que razão se dirigiram à ACL para negociar o AO, por que motivo pediram a opinião da Associação Portuguesa de Linguística e das universidades. Telefonavam aos embaixado­res, perguntavam a opinião dos ministros e pronto. Poupavam dinheiro, não roubavam tempo precioso a quem dedica gran­de parte da vida ao estudo e o resultado seria exactamente o mesmo. As respostas dos acadé­micos foram para a gaveta, os políticos não leram nem o AO nem os pareceres e tudo ficou como dantes. Até agora.

 

Há alguma vantagem para a lusofonia com o AO?

O conceito “lusofonia” é a primeira e mais óbvia vítima de todo este processo. Já tive colegas brasileiros que me per­guntaram porque é que “nós” já não escrevemos ‘aspecto’ com cê ou ‘recepção’ com pê. Pois… Es­távamos unidos pelo “aspecto” e pela “recepção” e agora deixá­mos de estar. A única vantagem para a “lusofonia”, e se entender­mos “lusofonia” como a esfera da CPLP, é a de se perceber a falta de rigor como matérias sé­rias são tratadas. Uma decisão sensata da CPLP seria abandonar imediatamente o AO.

 

Isso explica as reservas de Angola e Moçambique?

Isso e não só. Em Moçam­bique, queixam-se de falta de clareza sobre o que se pretende com o AO e têm toda a razão. Além disso, apresentam argu­mentos económicos e fizeram a avaliação dos custos, coisa que ninguém se lembrou de fazer em Portugal. Repare: Moçambique não adoptou o AO e tem uma estimativa. Pergunte a qualquer responsável português quanto custa o AO. Não sabem, não fazem ideia. Não sou diplomata, mas quando os defensores do AO passam a vida a dizer que há um motor da língua, um centro da lusofonia, que há quase 200 milhões, esquecem-se de que Angola e Moçambique têm uma palavra a dizer. Quando num editorial do “Jornal de Angola” se diz que “nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só porque possui mais falantes”, acho que já percebemos que a fa­laciosa conversa dos dez milhões que não podem ter autonomia ortográfica pode convencer al­gumas almas em Portugal, mas que não convence quem tem meios para se tornar uma potên­cia de facto. Trata-se de matéria diplomática, sensível, mas que foi tratada a camartelo.

 

O que acha dos jornais, como “O Diabo”, que recu­sam o AO?

Na minha opinião, prestam um autêntico serviço público e são sensatos, ao contrário de ou­tros, que, apesar de discordarem e ainda por cima profundamente do AO, se rendem, em vez de tentarem esclarecer os leitores.


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publicado por fmvalada às 15:57
Sexta-feira, 02 de Março de 2012


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publicado por fmvalada às 01:04
Quarta-feira, 29 de Fevereiro de 2012

 

«Depois, a escrita não reproduz fielmente a fala, como sugere a metáfora tantas vezes repetida de que “ela é a roupagem da língua oral”. Ela tem as suas leis próprias e tem um caminho próprio.»
Joaquim Mattoso Camara Jr., Estrutura da Língua Portuguesa, Petrópolis, Vozes, 2009 [1970], p. 20.

 

«Como seria a nossa vida se tivéssemos de raciocinar letra a letra para descodificar as palavras?»
Nuno Crato, O “Eduquês” em Discurso Directo, Lisboa, Gradiva, 2011 [2006], p. 103.

 

1. Todos os dias, ao final da tarde, ocorre um fenómeno a oeste, ao qual, sem sombra de estupefacção, continuamos a atribuir o nome de pôr do Sol. O nome dado ao fenómeno, consequência da nossa percepção em contemplação pura do horizonte, não é corroborado pela actual acepção do movimento dos corpos celestes. Desde que Galileu, em resistência murmurada, mas não silenciosa, terá pronunciado “eppur si muove”, conceptualmente, o pôr do Sol lá foi deixando de existir. Alguns séculos mais tarde, mais propriamente em Junho do ano passado, saiu do prelo o manual “Saber Usar a Nova Ortografia”, de Edite Estrela, Maria José Leitão e Maria Almira Soares, cujos segmentos de recapitulação histórica (pp. 18-27) e de carácter substantivo (pp. 29-226) me merecem comentários, mas, por evidentes limitações de espaço para apreciação justa e recta, não serão hoje objecto de análise.

Interessa-me, por ora, rebater exclusivamente a vertente conceptual do livro de Estrela, Leitão & Soares, traçada no lapidar “a ortografia não é mais do que a aparência da língua, a sua pele” (p. 14), uma reiteração de ideia já enunciada pela primeira Autora, na página 18 do livro “A Questão Ortográfica”, de 1993, encontrando-se agora a frase despojada do remate original “e por isso de importância secundária”.

Qualquer redução do conceito ortografia ao papel de actriz secundária é inexacta e desprovida de sentido em sociedades em que a escrita influencia e domina aspectos essenciais do quotidiano. Desde o final dos anos 70 do século passado, têm-se realizado estudos que consideram aspectos que não são devidamente considerados pelas Autoras: a influência da ortografia no conhecimento da língua e o primeiro contacto com determinadas palavras estabelecido através da escrita e não da oralidade. Sem entrar em pormenores (a bibliografia é extensa, pormenorizada e posso facultá-la), pensemos na diferença em termos de relação com a língua entre quem sabe ler e escrever e quem não sabe e na discriminação associada a esta dicotomia.

Na página 14 da obra em apreço, as Autoras sugerem que “as alterações do novo acordo ortográfico” vão no sentido de “reduzir ao mínimo o desacordo entre a palavra e a linguagem escrita” (in Maria Leonor Carvalhão Buescu, “Gramáticos Portugueses do Século XVI”, 1978, p. 29). Contudo, ao contrário do postulado das Autoras, o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) não reduz, antes amplia, “o desacordo entre a palavra e a linguagem escrita”. A base IX suprime acentos desambiguadores e a base IV elimina consoantes com valor de acento. Em português europeu, além de outros aspectos, também o grau de correspondência existente entre os planos escrito e oral é gravemente afectado pelo AO90.

Quanto ao “a ortografia não é mais do que a aparência da língua, a sua pele”, a metáfora de Estrela (1993) e de Estrela, Leitão & Soares (2011) falha o objectivo pretendido (alegar que a ortografia é aparência da língua, tal como a pele é aparência do corpo), pois o elemento pele não é aparência, é essência. A pele, além de contracenar com o fígado na saga “qual é o maior órgão do corpo humano?”, é protectora do organismo contra agressões externas e reguladora da temperatura do corpo, impede a desidratação e desempenha um papel crucial no recurso a um dos dois sentidos afectados pelo AO90: o tacto português.

A propósito, se para este desfecho me tivesse alicerçado na plataforma adoptada pelo Governo português, o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP), desenvolvido pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), a “base de legitimação científica” (p. 11) das Autoras, ter-me-ia deparado com mais uma das disparidades entre português europeu e português do Brasil criadas pelo AO90. Contudo, o que se passa é bem mais grave. Diz-nos o VOP do ILTEC que “tacto” e “olfacto” apenas se escrevem com cê no Brasil. Isto é francamente estranho. “Olfacto” e “tacto” não surgem no Dicionário Houaiss (edição de 2009) e no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), organizado por Malaca Casteleiro, co-autor do AO90, aparece a pronunciação do cê no “olfacto” do português europeu. As Autoras podem repetir até à exaustão que “a aproximação [?] ortográfica não interfere com (…) a ortoépia” (p. 13), mas, a partir de “olfato” [sic] AO90, quem tira legitimidade à pronunciação daquele cê? Um vocabulário ortográfico.

 

2. Ao ler o editorial d’A Bola de 31/12/2011, recordei-me de Marx in Soho, peça de Howard Zinn, em que Karl Marx regressa do Além, para nos explicar aquilo que pensa. Sem intermediários. A páginas tantas, Marx vagueia pelas ocorrências posteriores à captura de Napoleão III. As tropas de Bismarck invadem Paris e a recepção que obtêm é mais devastadora do que violência e ira da população. As estátuas estão envoltas em panos negros e há uma imensa, invisível e silenciosa resistência. Perante este cenário, as tropas partem, temendo essa resistência. Silenciosa.

Provavelmente, o director d’A Bola assistiu à peça e pensou que, através da silenciosa resistência nela reflectida, obteria os mesmos resultados. No editorial de 31/12/2011, lê-se o seguinte: “A partir da sua próxima edição (2 de Janeiro), primeira do ano de 2012, A Bola adere ao acordo ortográfico. Para trás fica um tempo de silenciosa resistência a um acordo do qual profundamente discordamos.” Foi efectivamente silenciosa. Nem chegou aos calcanhares duma consoante não pronunciada. Não fixou nada, não teve qualquer importância e ninguém deu por ela. Foi profunda. Só nos apercebemos que existia no dia da capitulação.

Como se sabe, a silenciosa resistência de Vítor Serpa produziu frutos: o AO90 instalou-se na redacção d’A Bola e estendeu-se num pachorrento sofá, charutando triunfalmente. Num país europeu em que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente aquilo que pensam pela palavra, o director dum jornal com tiragem de 120 mil exemplares preferiu respeitar votos de silêncio e quebrá-los apenas no momento da rendição. Eis um exemplo a não seguir.

 

3. Como diz Michael Cahill (noutro contexto), não são factores linguísticos que determinam a aceitação duma ortografia, mas “aquilo que as pessoas querem”. A direcção do PÚBLICO não quer o AO90, eu não quero o AO90, aparentemente, poucos o querem. Em vez de silenciosas resistências e fugas para a frente, subscreva-se a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (http://ilcao.cedilha.net).

 


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publicado por fmvalada às 15:24
Sexta-feira, 17 de Fevereiro de 2012

http://issuu.com/roquedias/docs/fmv_sol_17fev2012/1

 

 

 


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publicado por fmvalada às 00:00
Quinta-feira, 24 de Novembro de 2011

 

 

 

“Sou um professor pensador, não preciso do programa para me dizer o que devo fazer. Os colegas que querem que o programa seja prescritivo e autoritário são meros funcionários”
Paulo Feytor Pinto, Jornal de Notícias, 27/3/2010

 

 

 

 

“O professor tem que saber e tem que cumprir as regras que lhe são ditadas”
Edviges Ferreira, Sociedade Civil, RTP, 13/1/2010

 

 

1. Aparentemente, terá passado despercebida a entrevista de Francisco José Viegas ao Correio da Manhã de 30/10/2011, em que o secretário de Estado da Cultura escancara a porta à revisão do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e impugna o conteúdo quer das actuais “acções de formação”, quer, em última análise, do próprio AO90. Sublinha Francisco José Viegas que embora o AO90 seja “irreversível não quer dizer que não seja corrigível”. O AO90 é corrigível. Houve um responsável político que o disse. É um facto. Resta saber se Francisco José Viegas, além de comunicar tal iniciativa ao Correio da Manhã, informou as escolas, o Governo e “todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo”, não esquecendo os redactores do Diário da República. Na ordem do dia, teremos, em conjectura e se tudo correr bem, além da reavaliação da base IV e da eliminação da base IX, a completa inutilidade das publicações actualmente saídas do Lince com amputação consonântica, mutilação diacrítica, hifenização arbitrária e facultatividade à vontade do freguês. Seria importante que este intuito de Francisco José Viegas passasse das páginas do Correio da Manhã para as mesas de trabalho do senhor ministro Nuno Crato e da senhora presidente da Associação de Professores de Português (APP), Edviges Ferreira.

 

2. Em entrevista à Única do Expresso de 3/9/2011, Nuno Crato alegava que o AO90 “é um facto. Como disse salvo erro o ministro dos Negócios Estrangeiros, neste momento não é uma questão de opinião”. Antes pelo contrário. Enquanto o desígnio de Francisco José Viegas não se concretizar, o texto em apreço será sempre uma súmula de opiniões órfãs e descosidas e não uma colectânea de factos comprováveis. Desafio o senhor ministro a ler a alínea c) do ponto 4.2 da Nota Explicativa e a exigir: i) estudos sobre o “enorme esforço de memorização” das crianças de 6-7 anos diante dos P de recepção e C de selecção pré-AO90; ii) estudos que comprovem um menor “esforço de memorização” perante o “-eção” da receção AO90 e o “-essão” da recessão comum; iii) averiguar se esse “esforço de memorização” levou os autores do AO90 à criação, na base IV, 1.º, b), do espectro que ensombrou a recta final do século XX: a enigmática figura da letra C em aflição e em aflito…

 

3. Há dois meses, assustei-me com o formidável objectivo que Edviges Ferreira pretende obstinadamente atingir: “Penalizar os seus alunos que escreverem com a antiga grafia” (PÚBLICO, 8/9/2011). Aparentemente, nada demove a presidente da APP da exemplar aplicação dos respectivos e correspondentes correctivos, nem sequer a nota ministerial de 6/9/2011 a determinar que se “considerarão como válidas exclusivamente as regras definidas pelo AO a partir dos anos letivos [sic]” 2013-14 (6.º ano) e 2014-15 (4.º, 9.º, 11.º e 12.º anos). Seis dias depois, a presidente da APP voltava à carga no Correio da Manhã (12/9/2011), num registo mais suave, sem soar a palmatória: “Entendo que se deve penalizar os erros, mas isso fica ao critério dos professores” . As regras determinam 13-14 e 14-15, mas Edviges Ferreira quer fugir para a frente e começar a castigar de rompante, em 11-12, sem vocabulário ortográfico estável, sem acções de formação esclarecedoras, sem consideração ponderada, séria e objectiva dos pareceres científicos.

 

4. Assegurava a presidente da APP, na edição de 7/9/2011 do Jornal de Letras, que “contra as mudanças há sempre muitos “velhos do Restelo”". Sempre me surpreendeu o silêncio com que os especialistas em estudos camonianos reagem a este tropo recorrente: o Velho do Restelo vem invariavelmente à tona para silenciar a opinião contrária. Em vez de se discutir, debater e esclarecer, emerge o venerando homem e afunda-se a discussão. Na estrofe 94 do Canto IV d”Os Lusíadas, não é prestada qualquer informação sobre o mister da personagem. Durante a prelecção a que se dedica (estrofes 95-104), apesar de revelar aptidão para discorrer sobre mitologia, geografia e actualidade de finais do século XV, o Velho do Restelo não alude a qualquer aspecto cartográfico, não se pronuncia sobre a construção e a reparação das naus, remetendo-se a um prudente silêncio acerca de instrumentos náuticos, cálculos matemáticos e cosmográficos. Temos a certeza de que a opinião do “Velho do Restelo” não é uma opinião técnica avalizada. Pelo contrário, “contra as mudanças” foram elaborados pareceres, milagrosamente desencarcerados da gaveta onde se encontravam a acumular bolor, graças à acção da senhora deputada Zita Seabra. Reduzir quem se dedica ao estudo das escritas de base alfabética à condição de Velho do Restelo é inaceitável. Gregory Bateson (a propósito do “órgão da linguagem”) recomendava prudência na leitura das metáforas de Noam Chomsky. O mesmo conselho fica para quem envereda pelo atalho da menção àquele que, do cais, com voz peſada hum pouco aleuantando, se limitou a reflectir uma opinião não especializada sobre a gesta.

 

5. Teria Paulo Feytor Pinto (ex-presidente da APP) abandonado a óptica do “basta uma meia hora para os professores aprenderem as novas regras. E depois é aplicá-las” (PÚBLICO, 2/9/2009)? Teria sido anunciado que Paulo Feytor Pinto subscrevera a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (http://ilcao.cedilha.net/)? “Regras com ambiguidades que abrem a porta a arbitrariedades e que, por isso, são uma ameaça à transparência” (PÚBLICO, 8/9/2011) seria a solução do enigma defina as bases IV e IX do AO90 em termos técnicos e em dezoito palavras. O repto era, afinal, outro.


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publicado por fmvalada às 14:54
Quinta-feira, 13 de Outubro de 2011

 

 

 

Todos favorecei em seus ofícios,
Segundo têm das vidas o talento
- Camões, Os Lusíadas (X, 150)

 

1. No passado dia 28 de Fevereiro, Margarita Correia, responsável pela coordenação do Vocabulário Ortográfico do Português do ILTEC, apresentou uma comunicação ("Como usar a nova ortografia?") na sala Ursa Maior do Madeira Tecnopólo. Na altura, recebi ecos dessa intervenção. Recentemente, pude verificar a fiabilidade dos ecos, após a Secretaria Regional de Educação e Cultura do Governo Regional da Madeira ter disponibilizado os vídeos da sessão (1).

 

Explicou M. Correia que o texto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) é constituído por bases, vacilando contudo na quantidade: "Trinta e uma ou 32, nunca sei ao certo". Acontece que, das duas, nenhuma: nem 31, nem 32, apenas e tão-somente 21. A primeira base é a base I e a última a XXI. Com todo o respeito, se um camoniano dissesse publicamente que Os Lusíadas eram compostos por "21 ou 22 cantos, nunca sei ao certo", a conversa ficaria certamente por aí, não tanto pelo engano, mas por desinteresse pelo rigor. Já agora e para que não restem dúvidas, Os Lusíadas têm tão-somente dez cantos. Não há décimo segundo nem vigésimo primeiro. E as bases do AO90 são 21.

 

Quanto à hifenização, M. Correia perguntou aos presentes quantos destes sabiam usar efectivamente o hífen "em português". Solicitando uma resposta mental da assistência (i.e., sem prolação), M. Correia continuou no seu solilóquio e rematou: "Não há maneira de se aprenderem as regras todas de uma vez". Pelo meio, confessou que "é um dos aspectos menos conseguidos do acordo", terminando com um penoso "mas, pronto, era preciso aplicar". O efeito retórico fora criado logo à partida: não havendo motivo para se mudar o presente, lança-se um anátema sobre a regra actual, para se justificar a mudança, apesar de a mudança ser atreita a excepções do arco-da-velha (com hífenes).

 

Como o "bico-de-papagaio", esse genuíno bico-de-obra. Disse M. Correia que, na acepção de flor, se escreve com hífenes, enquanto na acepção de espondilose se redige sem hífenes. M. Correia antecipou: "Isto é muito estranho, mas eu pergunto às pessoas que estão na sala
quantas vezes escreveram a expressão "bico-de-papagaio"". Esta lógica da retracção no momento da crítica, tendo em conta a frequência pessoal de uso, é perniciosa: a) pode querer dizer que possíveis mudanças em formas como "prendam-me", "coitadas", "tê-lo-íamos" ou "tê-lo-ão" não poderiam ser objecto de crítica, apesar de terem o mesmo número de ocorrências de "bicos-de-papagaio" num corpus que M. Correia conhecerá, se não melhor, pelo menos há mais tempo do que eu; b) pode querer dizer o contrário, ou seja, considerando a elevada ocorrência da palavra "Egipto" em textos redigidos por egiptólogos, só nesta área específica se poderia criticar a supressão de P ("Egito") e, em última análise, atribuir-se-lhe uma derrogação. Validar uma crítica pela frequência do objecto e não pela pertinência do argumento aduzido é prática simultaneamente arenosa e movediça.

 

Por exemplo, eu estaria impossibilitado de contestar esta regra, dado que, graças a esta crónica, me estreio na redacção de "bico-de-papagaio". Após M. Correia referir "bico-de-papagaio", verifiquei no seu VOP que a responsável pela sua elaboração não considerou que o singular de "bicos-de-papagaio" sem hífenes é "bicos de papagaio". Exactamente igual: no plural e no singular. Com "esse"depois do "o" final de "bico". Mas sem hífenes. Para distinguir da flor. Presume-se. Se M. Correia tivesse consultado o seu próprio VOP, teria verificado ser o singular da flor "bico-de-papagaio" e o da doença "bicos de papagaio", sem hífenes a separar os elementos e com "esse" final no primeiro elemento.

 

2. Proença de Carvalho e Salazar Casanova (Boletim da Ordem dos Advogados n.º 73, Dezembro de 2010, p. 35) afirmam não haver "sanções directas" para quem não cumprir as regras do AO90. Contudo, acrescentam: "Sem prejuízo de o desrespeito voluntário pelo AO poder ser considerado, por exemplo, um "ilícito disciplinar" no âmbito de uma relação laboral ou da função pública". Ilícito disciplinar. José António Pinto Ribeiro, segundo ministro da Cultura do XVII Governo Constitucional, afirmou o seguinte à Lusa, em 16.8.2008: "Ninguém será abatido, preso ou punido se não aderir às novas normas". Se eu fosse deputado à Assembleia da República, convocaria Pinto Ribeiro, Proença de Carvalho e Salazar Casanova, com carácter de urgência, para responderem em sede de comissão parlamentar a este imbróglio: uns mencionam "ilícito disciplinar", outro disse que ninguém seria "punido". Quid juris?

 

Enquanto jurista, Pinto Ribeiro sabe melhor do que eu que se é "punido" por "ilícito disciplinar". Enquanto jurista, as palavras "preso" e punido" têm um peso importante quando as pronuncia. Terá havido quem no sector público ficasse descansado perante a prometida inexistência de punição por incumprimento do AO90. O parecer de Proença de Carvalho e de Salazar Casanova contradiz a promessa de um ministro de Portugal, cuja acção foi determinante para o desastre ortográfico que se nos apresenta. Aqui, das duas uma: ou Pinto Ribeiro falou de cor e deve por isso responder perante os portugueses, ou realmente não há punição para quem não cumprir e os interessados devem ser informados.
Tertium non datur.

 

* Autor de Demanda, Deriva, Desastre - Os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)

 

(1) - http://videos.sapo.pt/ruQY3B77tkqeVZjpzhRp


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publicado por fmvalada às 14:42
Terça-feira, 02 de Agosto de 2011

 

 

 

 

                             

 

 

 

Sed cum legebat, oculi ducebantur per paginas et cor intellectum rimabatur, vox autem et lingua quiescebant.

- Santo Agostinho, Confissões, 6.3

 

 

 

No PÚBLICO de 7.1.2010, referi que o debate em redor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) regressara à estaca zero. Com o artigo de Jorge Miranda Brevíssimas notas sobre três questões sérias (PÚBLICO, 13.7.2011), comprova-se quer o poder magnético dessa estaca zero, quer o facto de a polaridade induzida por todos os artigos, livros, estudos e pareceres o não conseguir anular. Vogar nesta corrente viciosa é experiência a evitar a todo o custo e atitude a suspender urgentemente.

 

Não creio numa sociedade que, em simultâneo, seja avançada e ignore a academia, derrubando doutrinas, uma após outra, navegando ao sabor da espuma atlântica, ocultando estudos e pareceres científicos imparciais. Não me reflicto numa sociedade que adopte acriticamente o AO90. Não entendo como, detectados e estudados os seus defeitos, a sua aplicação continue a ser olimpicamente anunciada. Não percebo como é possível que comentários laterais tenham precedência sobre o estudo e a análise, substituindo-os definitivamente.

 

O título desta crónica remete para elementos aparentemente ignorados por Jorge Miranda. Os erros do AO90 não se limitam nem a gralhas nem a falhas de pormenor, antes o impossibilitam enquanto instrumento adequado para a ortografia do português europeu. Esses erros não foram corrigidos. A impossibilidade não pode nem deve ser ignorada. Os parâmetros que se envolvem no conhecimento da ortografia são seis, neles não se inclui a distribuição da população no hemisfério ocidental, e já os mencionei aqui no PÚBLICO (20.12.2010): fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e ortografia propriamente dita.

 

Jorge Miranda, das duas, uma: ou não leu os textos que nestas e noutras páginas se têm escrito, ou não os percebeu. Se não leu, é pena, pois estes foram escritos para serem lidos e compreendidos. Se leu e não percebeu, nestas páginas têm-se feito remissões para obras de referência e quem tem estudado o AO90 encontra-se disponível para elucidar os pontos eventualmente menos claros do raciocínio.

 

Por falar em explicações, gostaria que o professor Jorge Miranda percebesse que esta sua menção não tem qualquer fundamento: "O que está em causa é a afirmação da língua portuguesa como grande língua [...] e, para esse efeito, uma ortografia com um mínimo de diferenças revela-se indispensável". Trata-se de uma opinião da qual discordo, mas que obviamente respeito. Contudo, neste momento, com o ano lectivo na soleira da porta, trata-se de opinião que induz em erro quem a lê. Jorge Miranda refere-se com toda a certeza a outro acordo ortográfico, a um acordo imaginário. Ao de 1990 não se pode estar a referir. De certeza.

 

Lendo o texto de Jorge Miranda (escrito segundo o AO90), reparo que, relativamente às constituições americana e brasileira e para indicar os artigos correspondentes, utiliza o advérbio de modo "respetivamente", sem C. Partindo do princípio de que o Diário da República a partir de 1.1.2012 utilizará esta grafia, convido Jorge Miranda a ler atentamente o Diário Oficial da União (o homólogo brasileiro do DR) e a verificar que "respectivamente", com C, é a forma usada. A partir de 1.12.2012, teremos "respetivamente" no DR e "respectivamente" no DOU. Actualmente, temos "respectivamente" em ambos. A divergência entre grafias é criada pelo instrumento que Jorge Miranda imagina como a concretização de "ortografia com um mínimo de diferenças".

 

Espero que Jorge Miranda se tenha dado conta da simultaneidade da discrepância criada pelo AO90. Seria desnecessário repetir, mas por vezes é necessário: esta discrepância não existia antes do AO90. Além de "respectivamente" e "respetivamente", temos também "receção" em Portugal e "recepção" no Brasil, "aspeto" em Portugal e "aspecto" no Brasil, "conceção" em Portugal e "concepção" no Brasil. Reparará que, actualmente e em ambas as costas atlânticas, se escreve "recepção", "concepção", "respectivamente" e "aspecto". Estas divergências gráficas (fiquemo-nos por este aspecto e nem entremos no carácter irrestrito do conceito "facultatividade") são criadas pelo AO90.

 

Seguindo o raciocínio de Jorge Miranda, verifica-se que a aplicação do AO90 nos dois jornais oficiais conduzirá à situação contrária da por si defendida. Algo de errado se passa no raciocínio? Não. Algo de errado se passa no AO90. Entre a realidade das duplas grafias criadas pelo AO90 e o desiderato de Jorge Miranda "uma ortografia com um mínimo de diferenças revela-se indispensável" o fosso é enorme. Este fosso leva-me a partir do princípio de que a função de papel para forrar gavetas dos pareceres científicos solicitados pelo poder político foi devidamente cumprida: não foram lidos.

 

Pergunta Jorge Miranda: "Por que razão havia de ser o português europeu a determinar a língua escrita em confronto com o português do Brasil, usado por quase 200 milhões de pessoas?". O português europeu não deve determinar a forma escrita de qualquer outra das normas, nem qualquer dessas normas deve determinar a norma escrita do português europeu. Isto, em termos programáticos. Agora, quanto ao resto, no que diz respeito ao português europeu, já aqui se referiu o processo do vocalismo átono, factor importante e diferenciador de realidades da língua portuguesa.

 

Para que Jorge Miranda perceba o que é o processo do vocalismo átono, convido-o a fazer como na Idade Média: em vez de ler silenciosamente este texto, leia-o em voz alta e verifique que as sílabas na sua maioria são átonas e que, dessas átonas, praticamente todas são reduzidas.

 

Praticamente. Porque há excepções que podem ser marcadas por, imagine-se só, uma consoante não pronunciada. Como esta palavra que acabo de escrever: "excepções". A palavra "excepções" constitui uma excepção à regra, tal como a palavra excepção. Parece complicado, mas não é. Agora, se Jorge Miranda convidar um falante de português do Brasil a ler este texto em voz alta, descobrirá um admirável mundo novo. E descobrirá o porquê de "exceção" no Brasil e de "excepção" em Portugal.

 

Após nove anos de itinerância pela Europa institucional, confesso não ter percebido como é que através do AO90 se poderá "afirmar o português, o português internacional, na União Europeia", como refere Jorge Miranda. Através da introdução de "aspetos" e "conceções" que eram "aspectos" e "concepções" em Portugal e no Brasil e que agora só são "aspectos" e "concepções" no Brasil? Confesso que não percebo e admito que gostaria imenso de perceber.

 

* Autor de Demanda, Deriva, Desastre - os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, 2009.


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publicado por fmvalada às 19:00
Quarta-feira, 06 de Julho de 2011

 

Por onde nao auia de auer peſſoa que ſe prezaſſe de ſi, que nao trabalhaſſe por ſaber algũ latim, que niſſo conſiſte o falar bem Portugues
- Pêro de Magalhães de Gândavo, 1574

 

 

Recente polémica nas páginas do Público, motivada por crítica ao singular uso de presidenta e à defesa da sua legitimação, leva-me a manifestar opinião sobre matéria não relacionada com ortografia. Uma estreia nestas páginas. E garanto, para gáudio de alguns, que não irei grafar o nome do instrumento de indesejável adopção, palavra com p não pronunciado, mas com valor diacrítico. Desta forma, poderá continuar a ler-me quem intencionalmente tem, desde os anos 80, ignorado os pareceres negativos elaborados sobre o dito instrumento, cujo nome, tal como o de Voldemort no Harry Potter, não será aqui mencionado.

 

1 - José Mário Costa (Público, 30.6.2011) pretende justificar a legitimação de presidenta, através da sua "generalizada atestação" em dicionários. Acrescenta que "pode não ser o recomendado ainda pela norma culta", mas adianta que Celso Cunha e Lindley Cintra, "ilustram outros femininos com similar formação, como "governanta", "infanta" ou "parenta"". Para mais tarde se reflectir, recordo que, na página 195 da edição que possuo da Gramática de Cunha & Cintra (18.ª, de 2005), os autores, além de presidenta, incluem giganta e hóspeda no "curso restrito do idioma". Porém, antes de me debruçar sobre os outros "femininos com similar formação" de J. M. Costa, entendamos o que é -ente e o porquê de presidente.

 

"Ente" é palavra portuguesa masculina, com origem no particípio presente (ens) do verbo latino esse. Sendo um ente um ser, temos em português cerca de quinhentos substantivos terminados em -ente, na sua maioria comuns de dois géneros. Há excepções e são honrosas: a serpente, ser que serpenteia; a gente, ser colectivo; o ambiente, aquilo que nos rodeia. Uma vidente é um ser que (aparentemente) vê o que é invisível ao comum dos mortais. Uma aderente e uma crente são entes do sexo feminino: as aderentes aderem e as crentes crêem. Como se vê, o género gramatical acaba de ser nitidamente indicado pelos respectivos artigos ("uma" e "as").

 

Como muito bem ilustrou António Emiliano, em artigo de Luís Miguel Queirós (Público, 24.6.2011): "Presidenta não é português". Corroboro a opinião de Emiliano e acrescento: videnta, crenta e aderenta não são palavras portuguesas. Para se legitimar uma presidenta, deve, em primeiro lugar, atribuir-se género feminino à palavra ente e depois avançar-se para enta. A partir daí, e só a partir daí, se poderá legitimar presidenta. Efectivamente, a partir de enta tudo pode acontecer. Faço igualmente notar que -enta é terminação de palavras femininas formadas, ou não, a partir de masculinos em -ento e não em -ente: ementa (sem masculino), mas avarenta (com masculino avarento). Apesar de haver quem diga sargenta, o ente que serve (servient), em contexto formal, é sargento e tem dois géneros.

 

Quando J. M. Costa refere "femininos com similar formação, como "governanta", "infanta"", faço notar que estas palavras não terminam em -enta, , mas em -anta, não sendo o masculino -ente, mas -ante. A "similar formação" é aparente e importante, mas é conveniente distinguir a importância da diferença. Daí, Cunha & Cintra (p. 195) referirem-se a -nte, não serpenteando por -ente nem por -ante.

 

O -ante em infante é um falso sufixo: não é -ante, mas -fante, do latim "fari" (falar). In-fante significa "que não fala", tal como prefaciar significa "falar no princípio". Infanta impôs-se, mas -ante não é sinónimo de -ente. Uma governanta e uma governante têm funções diferentes: a governanta governa uma casa, a governante governa um país. Continuando em -ante, elefante entrou no português através do latim e neste através do grego έλέφας, marfim). Não havendo sufixo comum que permita uma explicação com regra comum, como em -ente, abriu-se a porta à flexão do género em -ante. Convém igualmente distinguir que alifante era usada até ao século XVI, tendo a relatinização do português permitido que Cunha & Cintra tivessem apresentado como excepção à "igualdade formal" elefante/a e não alifante/a.

 

2 - No Diário de Notícias de 1.7.2011, a propósito de crónica de Vasco Graça Moura sobre o instrumento a cujo nome não aludo, J. M. Costa refere o seguinte: "não é razoável a persistência em argumentos inexactos, como, por exemplo, na questão da queda das consoantes "c" e "p" das sequências "cc", "ct", "pt", etc.". Salvo melhor opinião, o que "não é razoável" é a persistência de J. M. Costa em considerar opiniões não fundamentadas mais exactas do que conclusões de quem estuda esta matéria. O pecado não é original, note-se, mas convém não perpetuar a erva daninha semeada pelos adeptos do instrumento sem referências, que convém abandonar e cujo nome não menciono.

 

Aproveito os caracteres que me restam para informar que cobarde/covarde, febra/fevra, louro/loiro, ouro/oiro e afins não são variantes ortográficas, pois a sua "diferença" não remete para a grafia, mas para certos usos da fala ocorridos num determinado período. Cobarde e covarde não foram criadas por instrumento ortográfico, mas por pronunciações (e não "pronúncias") diferentes do "u" de couard (do fr. antigo para cauda); oiro e loiro coexistem com ouro e louro, mas a corruptela "au" g "ou" g "oi" ocorreu no século XVI, porventura por influência judaica: por exemplo, na Farsa de Inês Pereira de Gil Vicente, os judeus Latão e Vidal usam hoiver, coisa, oiço e usam-nas em discurso oral, não em registo escrito. Afinal de contas, o teatro é o palco da oralidade por excelência.

 

Detenhamo-nos nesta ideia de indistintamente se poder usar fevra (e fêvera - J.M.Costa esqueceu-se de fêvera), covarde e oiro, quando na consulta de dicionários que J.M.Costa apresenta como referências se verifica remissão para febra, cobarde e ouro. Parte-se do princípio (e só deste) de que quem dicionarizou considerou estas entradas como as da norma-padrão, em sã convivência com outras. A fronteira prescrição/descrição é matéria delicada. Contudo, estes exemplos não são, nem de longe nem de perto, comparáveis com as facultatividades ortográficas irrestritas criadas pelo tal instrumento que nem sob coacção citarei. Muitas destas explicações estarão inclusive no Ciberdúvidas, em respostas dadas a consulentes. Consulentes, note-se. "Os" ou "as" consulentes. Consulenta, tal como presidenta, não é norma-padrão, aquilo que popularmente se chama "português correcto".

 

* Autor de Demanda, Deriva, Desastre - os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, 2009

 


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publicado por fmvalada às 19:38
Sábado, 25 de Junho de 2011

 

 

 

 

Senhor Primeiro-Ministro
Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros
Senhor Ministro da Educação, do Ensino Superior e da Ciência

 

 

1. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO) foi aprovado em 1990 pelo Parlamento e ratificado pelo Presidente da República em 91, sendo mera adaptação do Acordo de 86, abandonado por força da reacção da opinião pública portuguesa. Ao contrário do AO de 86, que teve divulgação nos meios de comunicação portugueses, a redacção e tramitação do AO de 90 ocorreram discretamente, longe do olhar e escrutínio público dos portugueses.

 

2. Enquanto reforma ortográfica, o AO é um desastre: não assenta em nenhum consenso alargado, não foi objecto de discussão pública, não resulta do trabalho de especialistas competentes (a julgar pelas imprecisões, erros e inconsistências que contém e pelos problemas que cria) e vem minar, pela introdução generalizada e irrestrita de facultatividades ortográficas, a própria noção de ortografia. Tudo isto foi devidamente apontado por intelectuais e linguistas portugueses ao longo dos últimos 20 anos em pareceres, artigos e livros ignorados pelas entidades responsáveis. O único parecer favorável (assinado em 2005 por um dos co-autores do AO!) é o da Academia das Ciências, instituição que patrocinou a criação do acordo.

 

3. Os vícios do AO enquanto instrumento jurídico configuram mentiras gritantes vertidas em lei. No preâmbulo diz-se que "o texto do Acordo que ora se aprova resulta de um aprofundado debate nos países signatários"; deste debate não há vestígio nem se conhece menção. A Nota Explicativa do AO refere estudos prévios dos quais não há registo, apresenta argumentos sem sustentação científica sobre o impacto do AO no vocabulário português (baseados numa lista desconhecida de 110 000 palavras e ignorando a importância de termos complexos, formas flexionadas de nomes e verbos e índice de frequência das palavras) e "explica" de forma confusa os aspectos mais controversos da reforma, p. ex. a consagração, como expediente de "unificação ortográfica", de divergências luso-brasileiras inultrapassáveis com o estatuto de grafias facultativas. Algumas dessas divergências existiam antes do AO ("fato" ~ "facto", "ação" ~ "acção", "cômodo" ~ "cómodo", "prêmio" ~ "prémio", "averígua" ~ "averigua", etc.); outras são criadas pelo próprio AO ("decepção" ~ "deceção", "espectador" ~ "espetador", "falamos ~ "falámos", "Filosofia" ~ "filosofia", "cor-de-rosa" ~ "cor de laranja", etc.). Pelo AO a palavra "decepcionámos" (e outras similares) passaria a escrever-se correctamente em todos os países lusófonos de quatro maneiras diferentes ("decepcionámos", "dececionámos", "decepcionamos", "dececionamos"). O termo "Electrotecnia e Electrónica" (designação de curso, disciplina e área do saber) poderia ser escrito de 32 maneiras diferentes, sem que o AO ofereça qualquer critério normativo. Sendo um tratado entre oito estados soberanos que reivindicam uma matriz cultural partilhada, o AO deveria ter concitado aceitação plena de (e em) todos os países signatários. Tal não aconteceu, o que, 21 anos após a sua assinatura, é prova dos problemas por ele criados.

 

4. Da VI Reunião Extraordinária do Conselho de Ministros da CPLP de 2010 resultou a Resolução sobre o Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, com a seguinte recomendação (III.5): "Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos os sistemas educativos." Esta recomendação destitui, por si só, o AO de qualquer fundamento: como se pode defender simultaneamente um acordo que pretende unificar as tradições ortográficas vigentes nos Estados signatários através de facultatividades gráficas, e, ao mesmo tempo, propor-se que o problema das grafias facultativas se resolva pelo reconhecimento oficial de tradições ortográficas divergentes, logo, não unificadas?

 

5. Ninguém conhece as consequências reais do AO na sociedade portuguesa, pois nenhum estudo de avaliação de impacto foi feito e ninguém sabe estimar os custos da sua aplicação - que não serão só de ordem financeira - pois não há estudos de avaliação custo/benefício. Se os grandes projectos de Estado exigem a realização de estudos preparatórios - recorde-se que o aeroporto da Ota foi, após 30 anos de indecisão, abandonado por causa de um estudo técnico -, como se pode exigir menos relativamente à língua portuguesa escrita? A Lei de Bases de Protecção do Património Cultural inclui no conceito e âmbito do património cultural a língua portuguesa, nestes termos: "enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do património cultural português." (art.º 2.º, n.º 2). É menos importante a estabilidade de um "fundamento da soberania nacional" do que um aeroporto?

 

6. Que o Estado português se proponha adoptar o AO sem um vocabulário normativo que não seja o vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa estipulado pelo art.º 2.º do AO (violando assim um tratado que assinou e ratificou) revela apenas a ligeireza com que esta matéria tem sido tratada e a incontrolada flexibilidade da aplicação prática do AO. Afinal, nenhum tratado internacional pode ficar sujeito a interpretações locais ou aplicações de carácter regional ou nacional.

 

7. O domínio da ortografia, sabe-se hoje, faz parte intrínseca da competência linguística dos falantes; não é simples "roupagem gráfica" da língua. E, como é reconhecido não só por académicos mas por instituições internacionais como, p. ex., a OCDE no relatório PISA 2003, a literacia - pedra angular da aquisição de todos os saberes formais e de todo e qualquer processo de aprendizagem escolar - pressupõe (em termos linguísticos estritos) o domínio de uma ortografia codificada estável, para além de um vasto conhecimento vocabular, gramatical e fonético.

 

8. O AO não serve o fim a que se destina - a unificação ortográfica da língua portuguesa - e assenta no pressuposto falacioso de que a unificação ortográfica supriria as diferenças já antigas entre português europeu e português do Brasil, de ordem fonológica, lexical e sintáctica. Mesmo que a unificação a 100% fosse possível (e o AO reconhece que não é), escrever de igual forma dos dois lados do Atlântico não assegura a compreensão mútua daquilo que é (cada vez mais) diferente e divergente.

 

9. Por atentar contra a estabilidade ortográfica em Portugal e integridade da língua portuguesa, o AO atenta contra o progresso e desenvolvimento do povo português em época particularmente difícil da sua História.

 

10. O AO é um erro monstruoso que VV. EE. têm o poder de corrigir, suspendendo a sua aplicação.

 

João Roque Dias - Tradutor certificado pela Associação Americana de Tradutores

 

António Emiliano - Professor de Linguística da UNL, autor de Fonética do Português Europeu e de Apologia do Desacordo Ortográfico

 

Francisco Miguel Valada - Intérprete de conferência junto das instituições da UE, autor de Demanda, Deriva, Desastre - Os Três Dês do Acordo Ortográfico

 

Maria do Carmo Vieira - Professora de Português e Francês, autora de O Ensino do Português



publicado por fmvalada às 18:28
Domingo, 19 de Junho de 2011

 

Quia parvus error in principio magnus est in fine
S. Tomás de Aquino, De ente et essentia

 

Há alguns meses, após ter apresentado uma comunicação no Instituto Franco-Português, em Lisboa, em seminário organizado pela União Latina,  fui publicamente confrontado pelo senhor embaixador Lauro Moreira, defensor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) e então embaixador do  Brasil junto da CPLP, com o facto de insistentemente me referir à supressão do acento da flexão verbal “pára”. Tratava-se de reacção ao exemplo de que me munira: um título do PÚBLICO de 13/4/2009 (“Bloqueio nos fundos da UE pára projecto de milhões na área do regadio”). Após supressão do acento agudo, tal como prescrito pelo AO 90 na sua base IX, 9.º, qualquer leitor poderia ser induzido em erro, pois “para” tanto poderia ser preposição, como flexão verbal, com óbvias consequências sintácticas e semânticas de tal “simplificação” na frase em apreço.

 

Nesse longínquo mês de Novembro de 2009, recorri a uma ficção para ilustrar as consequências nefastas noutros planos, para além do grafofonémico. Infelizmente, com a adopção acrítica, obediente e arbitrária do AO 90 por parte de alguns meios de comunicação social, a  comedida simulação deu lugar a uma perceptível realidade. Um exemplo recente da RTP põe em causa valores fundamentais do elementar bom senso. Aparentemente, os comboios adquiriram o direito à greve.

 

Com “greve na CP para comboios em todo o país”, como se pode ler em notícia da RTP, estamos perante a descarrilada hipótese de os comboios poderem fazer greve. Admite-se, desta forma, que a greve se aplique aos comboios e não a quem é responsável pela sua circulação, independentemente da forma verbal elíptica (neste caso, “convocada”). Assim, considerando que “para” funciona na perfeição como preposição, a frase “convocada greve na CP para comboios em todo o país” é perfeitamente plausível. Poderia ser gralha, mas não é. É determinação do AO 90.

 

Mais lamentável do que a ambiguidade criada pelo AO 90 é o avanço impetuoso para a aplicação de lei tão defeituosa, sem conjuntamente se reflectir de forma séria, serena e ponderada acerca duma ampla revisão da mesma ou do seu completo abandono. A aplicação do AO 90 é claramente promovida por quem sobre esta matéria nem lê o que sobre ela se escreve, nem escuta os argumentos que sobre esta se aduzem. Parecerá um paradoxo dizer-se que só quem não lê pode impor a aplicação de um instrumento para facilitar a leitura, mas que efectiva e objectivamente a complica. Pode parecer absurdo, mas é o que se passa no início do segundo decénio do século XXI, num país chamado Portugal.

 

No PÚBLICO de 7/6/2011, José Mário Costa responde ao editorial da direcção do PÚBLICO de 4/6/.2001. Relativamente a “sector”, estranho que José Mário Costa defenda a dupla grafia, socorrendo-se da transcrição fonética. Apesar de o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora atestar ambas as formas, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências limita-se à transcrição com oclusiva velar [k]. Basear um instrumento ortográfico num “critério fonético (ou da pronúncia)” e alicerçá-lo em transcrições fonéticas, atribuindo-lhes carácter prescritivo, é escorar um erro com outro erro.


Recordo que o facto de em “sector” a consoante C ter valor de acento continua a não ser considerado, quando se trata de componente essencial  das importantes excepções ao processo do vocalismo átono do português europeu. Uma primeira hipótese é o facto de o processo ser desconsiderado. Uma segunda hipótese não se limita à desconsideração do processo, mas à do próprio português europeu.

 

Concordo em absoluto com José Mário Costa, quando afirma: “Faça-se a discussão como outros fizeram, com argumentos sérios e sustentados.” Contudo, o argumento não colhe, por inexistência de árbitro isento que valide o argumento pela seriedade e pela sustentação. A manutenção, a promoção e, pior, o carácter impositivo de um instrumento inadequado à realidade do português europeu é a prova cabal do que acabo de escrever.

 

Afirma José Mário Costa que “a ortografia […] em nada contende com as componentes fundamentais da língua”. Trata-se de um espectacular argumento contra o AO 90, defendido por um seu protector e promotor. Com toda a naturalidade o escrevo, pois já alhures utilizei este mesmo argumento, com menção ao paradoxo. Para José Mário Costa perceber onde quero chegar e para entender a disparidade entre o por si escrito e o por si defendido, desafio-o a substituir “ortografia” por “base IX, 9.º, do Acordo Ortográfi co de 1990”. Verificará, sem grandes dificuldades, o facto de a bota não dar com a perdigota.

 

Quando S. Tomás de Aquino, no De ente et essentia, remetia para o Acerca do Céu de Aristóteles, manifestava uma das grandes preocupações de todos aqueles que reflectem sobre os actos e as acções: o pequeno erro inicial resultará, no final, num enorme erro. Uma supressão perfeitamente arbitrária de um acento numa flexão verbal, tornando-a homógrafa de uma preposição, é esse pequeno erro inicial. Se a esta supressão juntarmos todas as supressões arbitrárias, temos o AO 90 como um conjunto de pequenos erros iniciais, que resultarão num erro final ainda maior do que o próprio: a sua adopção.

 

Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, 2009


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publicado por fmvalada às 00:00
Sexta-feira, 01 de Abril de 2011

Valada, Francisco Miguel (2010). "Os lemas em '-acção' e a base IV do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990". Diacrítica - Série Ciências da Linguagem, n.º 24/1, pp. 97-108. Braga: Universidade do Minho.

http://www.issuu.com/roquedias/docs/fmv_diacritica24-1-1/1

http://ceh.ilch.uminho.pt/publicacoes/Diacritica24-1.pdf 

 



publicado por fmvalada às 19:31
Segunda-feira, 20 de Dezembro de 2010

 

Se os especialistas querem ajudar ao debate, a melhor maneira de o fazer não é exigir-lhe que termine

Rui Tavares, PÚBLICO, 02.12.2006

 

Isso que está a fazer, a escrever assim, à mão, é-lhe possível porque existe uma pequena área no seu cérebro que guardou memória gráfica das palavras. É por isso que às vezes escreve uma palavra à mão, para ver como lhe parece correcto, mesmo quando está a escrever no computador

Alexandre Castro-Caldas, depoimento recolhido por Clara Barata, PÚBLICA, 31.10.2010

 

Em 02.12.2006, Rui Tavares escreveu no PÚBLICO um dos mais lúcidos e abrangentes artigos de opinião sobre a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário, a famigerada TLEBS. Entre várias reflexões contidas nessa crónica, distingo a seguinte: “Se os estudantes desconhecerem os materiais de que é feita a língua, não só nunca atingirão as alturas do mosteiro da Batalha (ou d’Os Maias), como terão dificuldades em ler um artigo de jornal ou em escrever uma carta de reclamação.” Contudo, a propósito do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), Rui Tavares anunciou recentemente que “escrever é agora para mim um exercício de ouvido. O cérebro procura lembrar-se de como a língua pronuncia aquela palavra, tenta ouvi-la dentro da cabeça, para depois a poder escrever” (PÚBLICO, 27.10.2010).

 

Através desta segunda perspectiva, é possível conjecturar-se que, apesar de conhecer os “materiais de que é feita a língua”, Rui Tavares não considera nem as etapas da aquisição da leitura, nem os parâmetros indissociáveis do conhecimento da ortografia. De outro modo, não defenderia, como vem defendendo, de forma cientificamente tão desprendida, o indefensável AO 90, recorrendo a curiosos exercícios de pronunciação (“Eu digo aquele ‘c’ em espectador e aquele ‘p’ em conceptual? Se sim, escrevo-o. Se não, omito-o”). Na última fase da aquisição da leitura (a fase ortográfi ca), recorre-se à memória lexical, sem se passar por regras de conversão, e o mesmo se aplica à escrita, como se percebe das palavras de Castro-Caldas acima citadas.

 

Com que “materiais” se constrói e que parâmetros se envolvem no conhecimento da ortografia? Em 1988, Philip Luelsdorff enunciou-os de forma muito clara: fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e ortografia (incluindo morfografémica). Terá reparado o leitor na ausência de termo tão caro aos autores e promotores do AO 90: fonética. Ao AO 90 faltam bases teóricas, exercícios empíricos, referências científicas. Numa área tão desenvolvida pelo mundo académico, a existência de um instrumento sem referências a estudos leva a que, à partida, se preveja o desastre e, após leitura, se confirme a suspeita.

 

Rui Tavares incorre num erro, propagado por alguma opinião pública, apesar de tanto se ter escrito e dito sobre o assunto. Quando afirma “escrever é agora para mim um exercício de ouvido”, esquece-se de dois factores importantes: o alfabeto latino não é mero vector dos sons da fala e, ao analisar-se com rigor e minúcia o potencial impacto de alterações de um código ortográfico, devem ter-se em conta duas direcções – a da escrita e a da leitura.

 

Comecemos pela direcção da escrita. Por escreverem “de ouvido”, os autores do AO 90 escreveram “insersão” em vez de “inserção”, no título do ponto 7.1 da Nota Explicativa. Este erro foi mencionado por Maria Helena Mira Mateus, num parecer datado de 28.10.2005 e recebido em 31.10.2005 pelo Instituto Camões. Lamentavelmente, este erro manteve-se numa edição de Janeiro de 2009 da Imprensa Nacional–Casa da Moeda. Talvez por distracção, o parecer de Mateus não foi lido nem adoptado por quem o deveria ter feito. Terá sido confundido com papel para forrar gavetas.

 

Passemos à direcção da leitura. Lanço um repto a Rui Tavares: imagine-se membro da categoria “lusitanistas estrangeiros” (expressão do AO 90) e tente pronunciar todas as palavras afectadas pela base IX, 3.º do AO 90 (e.g. “diapnoico”, “dicroico” e “dipnoico”). Fiz recentemente a experiência com profissionais cujo domínio da língua portuguesa está acima de qualquer suspeita e nenhum ousou arriscar a pronunciação com certeza absoluta. E não eram “lusitanistas estrangeiros”, eram portugueses.

 

Pelo contrário, na norma actual, não há qualquer dúvida: o acento marca a abertura do timbre. Excepções? Duas: “comboio” e “dezoito”. Porquê? Convido à leitura do último parágrafo da página 76 do livro que escrevi sobre a matéria em apreço. Garanto que, ao contrário de Malaca Casteleiro e de Dinis Correia, serei sempre incapaz de justificar regras com excepções, como estes autores fizeram na página 18 do opúsculo Atual.

 

Um dos flagelos promovidos pelo AO 90 diz respeito ao aumento de homografias e de homonímias potenciais e reais. Em vez de me debruçar sobre uma “potencial” homonímia, menciono uma homonímia real, criada pelo AO 90 através da supressão do “p” de “óptica”, com a concomitante ambiguidade trazida para o significado “osteodistrofia da cápsula ótica”. Antes do AO 90, apenas ficaria na dúvida um leigo em medicina e utilizador da norma ortográfica do português do Brasil, vacilando entre dois consultórios: o do oftalmologista e o do otorrinolaringologista.

A partir do AO 90, essa ambiguidade estender-se-á a todos os leigos em medicina que escrevam ou leiam em português, independentemente da norma. A otosclerose (significante do significado supra) só afecta algumas pessoas, tem tratamento e não é contagiosa. Ao contrário do AO 90.

Nem o AO 90 se limita à supressão consonântica, nem o papel das consoantes se limita à pronunciação. Se há qualidade a atribuir às consoantes é a de não se limitarem a ser pronunciadas. Sobre esse tema já me debrucei em artigos anteriores: só não os leu quem não quis. Mas poderei voltar à carga. Tal como Rui Tavares, sou a favor de um debate esclarecedor. Nisso, estamos de acordo. Pelo contrário, o Poder solicitou pareceres que não leu e convidou especialistas que não escutou.

 

Em última análise, esse comportamento levou à errada conjectura da actual ministra da Cultura e do seu antecessor de que “facto” não manterá o “c”. Se debate tivesse havido, teriam descoberto, quer uma, quer outro, o “c” de facto, a labiríntica base IV e outras curiosidades, entre as quais se encontra o carácter inadequado do AO 90 para a norma do português europeu. A atitude do “essa discussão já foi feita para trás, não vamos voltar a ela” substituiu a demanda em prol da verdade e a procura de decisões sensatas em nome dos sujeitos escolarizados em sociedades grafocêntricas, ou seja, de todos nós.

 

Espera-se que, ao contrário do sucedido em 1327, num certo mosteiro beneditino no Norte de Itália, o debate não se fique pelo aspecto formal. Já não estamos na Idade Média, embora às vezes pareça.


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publicado por fmvalada às 19:34
Segunda-feira, 23 de Agosto de 2010

 

“Ainda me lembro, fotograficamente, do revisor do jornal, elogiando a minha prosa”

Jaime Bernardes, “E o meu sofrido português, como fica?”, Expresso, 16/08/2010 (1)

 

Ao falar-se sobre o Acordo Ortográfico, não se deve tratá-lo com o estilo e a abordagem nem da compaixão pelo sofrimento de As Terças com Morrie, nem da complacência pelo adultério de As Pontes de Madison County. Confesso que li os dois livros, que desaconselho em termos formais, mas que ajudam a ver a floresta escondida por detrás do discurso lamecha e com o seu quê de autopsicografia (vamos falar de Pessoa, não tarda nada). Por isso, bem vistas as coisas, até aconselho.

 

O Expresso, como se sabe, pela sua teoria arrancada ao éter, poupa letras. Como se depreende da sua redacção actual, gasta acentos e admite facultatividades na capitalização, violando na prática as Bases do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), que defende em Editorial. Por lhe faltarem autoridades com argumentos sólidos, recorre a textos de profundidade emotiva. Eu choraria convulsivamente perante o texto de Jaime Bernardes, não fosse o AO 90 assunto demasiado sério para perder tempo com choradeiras. A diferença é que eu li o AO 90 e aí reside a fronteira entre um choro gratuito e uma cabeça esclarecida.

 

Jaime Bernardes escreve um texto que o Expresso apoda de “comentário”. Há uns anos, Ivo Castro e Inês Duarte escreveram um “Comentário do Acordo” (de 1986) e não divagaram. Um comentário situa-se entre uma análise e uma divagação, tendendo muito para a primeira e pouco para a segunda. Para o Expresso é igual. Tanto faz como fez. Os méritos do Comentário de Castro & Duarte são ignorados pelo Expresso, que prefere divulgar o “comentário” de Bernardes.

 

A palavra “ortografia” não faz parte do “comentário” de Bernardes. A palavra “Base” está ausente. A palavra “consoante” também. Bernardes tem uma opinião pessoal. Não se pode nem defender nem atacar um instrumento científico com opiniões pessoais não sustentadas. Há teses de doutoramento sobre ortografia, há artigos científicos sobre a dita. O texto de Bernardes não é um comentário sobre o AO 90: trata-se de uma pura, mera e simples divagação.

 

Aliás, a única referência à ortografia no escrito em apreço é a seguinte: “Em 1967,  começaram por tirar da língua escrita um montão de acentos desnecessários, embora tenham ido buscar e instituído o trema, um lapso inexplicável para quem, inteligentemente, passou a considerar, em definitivo, o português como a língua do Brasil.” Trata-se de uma opinião inteiramente subjectiva e descosida. Não existe qualquer análise, apenas se adjectivam os acentos (“desnecessários”) e se comenta a acção da instituição do trema (“lapso inexplicável”). O porquê é um enigma. A razão, um mistério.

 

Quando se começa um comentário sobre ortografia com a citação de Bernardo Soares “A minha pátria é a língua portuguesa”, o resto é previsível. Se Copérnico tivesse começado o seu texto revolucionário citando o Eclesiastes, estaria tudo perdido. Como Bernardes gosta desta frase de Soares, devemos depreender que ele ama a língua portuguesa. Como defende o AO 90, pretenderá que quem o defende ama a língua portuguesa. Pior: depreenderá que quem o ataca não ama a língua portuguesa.

 

Se eu começasse um texto sobre o AO 90 com a citação “Philosophia deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta sobre bases clássicas ou pseudoclássicas”, o que diria Bernardes? O autor da citação é Fernando Pessoa. Em que ficamos? Quem acha que Filosofia se deve escrever “com duas vezes” F não ama a língua portuguesa? O autor é o mesmo, embora haja um heterónimo de permeio.

 

Bernardes continua o seu texto, afirmando que “para os portugueses eu passei a falar à brasileira, enquanto que [sic] para os brasileiros continuei a falar à portuguesa”. Afinal não se trata de um comentário do AO 90, pois Bernardes teima em falar sobre tudo, evitando a ortografia. Adianta ainda que, antes de determinado programa de rádio, dois brasileiros e dois portugueses “discutiam todos os dias quais as palavras mais normais e supostamente mais compreensíveis tanto para portugueses como brasileiros”. Cá temos: léxico. Léxico em vez de ortografia. Continua a senda dos comentários sobre um tema sem se referir o tema.

 

Este texto de Bernardes é o arquétipo da defesa possível do AO 90, perante o descalabro da sua aplicação, apoiada na divagação, na elogiosa referência autobiográfica (ver a epígrafe) e na menção ao sofrimento como derradeiros recursos, uma vez que o rigor não lhe vale. Portugal assim não vai lá e a língua portuguesa muito menos. A fase da Deriva já passou. Estamos no momento do Desastre.

 

Nota: agradeço a Nuno Ferreira, meu antigo colega de curso e Amigo, a chamada de atenção para este texto, que, de outro modo, me teria passado despercebido.

 

Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)

 

1) http://aeiou.expresso.pt/e-o-meu-sofrido-portugues=f599319


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publicado por fmvalada às 21:35
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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