Terça-feira, 02 de Agosto de 2011

 

 

 

 

                             

 

 

 

Sed cum legebat, oculi ducebantur per paginas et cor intellectum rimabatur, vox autem et lingua quiescebant.

- Santo Agostinho, Confissões, 6.3

 

 

 

No PÚBLICO de 7.1.2010, referi que o debate em redor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) regressara à estaca zero. Com o artigo de Jorge Miranda Brevíssimas notas sobre três questões sérias (PÚBLICO, 13.7.2011), comprova-se quer o poder magnético dessa estaca zero, quer o facto de a polaridade induzida por todos os artigos, livros, estudos e pareceres o não conseguir anular. Vogar nesta corrente viciosa é experiência a evitar a todo o custo e atitude a suspender urgentemente.

 

Não creio numa sociedade que, em simultâneo, seja avançada e ignore a academia, derrubando doutrinas, uma após outra, navegando ao sabor da espuma atlântica, ocultando estudos e pareceres científicos imparciais. Não me reflicto numa sociedade que adopte acriticamente o AO90. Não entendo como, detectados e estudados os seus defeitos, a sua aplicação continue a ser olimpicamente anunciada. Não percebo como é possível que comentários laterais tenham precedência sobre o estudo e a análise, substituindo-os definitivamente.

 

O título desta crónica remete para elementos aparentemente ignorados por Jorge Miranda. Os erros do AO90 não se limitam nem a gralhas nem a falhas de pormenor, antes o impossibilitam enquanto instrumento adequado para a ortografia do português europeu. Esses erros não foram corrigidos. A impossibilidade não pode nem deve ser ignorada. Os parâmetros que se envolvem no conhecimento da ortografia são seis, neles não se inclui a distribuição da população no hemisfério ocidental, e já os mencionei aqui no PÚBLICO (20.12.2010): fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e ortografia propriamente dita.

 

Jorge Miranda, das duas, uma: ou não leu os textos que nestas e noutras páginas se têm escrito, ou não os percebeu. Se não leu, é pena, pois estes foram escritos para serem lidos e compreendidos. Se leu e não percebeu, nestas páginas têm-se feito remissões para obras de referência e quem tem estudado o AO90 encontra-se disponível para elucidar os pontos eventualmente menos claros do raciocínio.

 

Por falar em explicações, gostaria que o professor Jorge Miranda percebesse que esta sua menção não tem qualquer fundamento: "O que está em causa é a afirmação da língua portuguesa como grande língua [...] e, para esse efeito, uma ortografia com um mínimo de diferenças revela-se indispensável". Trata-se de uma opinião da qual discordo, mas que obviamente respeito. Contudo, neste momento, com o ano lectivo na soleira da porta, trata-se de opinião que induz em erro quem a lê. Jorge Miranda refere-se com toda a certeza a outro acordo ortográfico, a um acordo imaginário. Ao de 1990 não se pode estar a referir. De certeza.

 

Lendo o texto de Jorge Miranda (escrito segundo o AO90), reparo que, relativamente às constituições americana e brasileira e para indicar os artigos correspondentes, utiliza o advérbio de modo "respetivamente", sem C. Partindo do princípio de que o Diário da República a partir de 1.1.2012 utilizará esta grafia, convido Jorge Miranda a ler atentamente o Diário Oficial da União (o homólogo brasileiro do DR) e a verificar que "respectivamente", com C, é a forma usada. A partir de 1.12.2012, teremos "respetivamente" no DR e "respectivamente" no DOU. Actualmente, temos "respectivamente" em ambos. A divergência entre grafias é criada pelo instrumento que Jorge Miranda imagina como a concretização de "ortografia com um mínimo de diferenças".

 

Espero que Jorge Miranda se tenha dado conta da simultaneidade da discrepância criada pelo AO90. Seria desnecessário repetir, mas por vezes é necessário: esta discrepância não existia antes do AO90. Além de "respectivamente" e "respetivamente", temos também "receção" em Portugal e "recepção" no Brasil, "aspeto" em Portugal e "aspecto" no Brasil, "conceção" em Portugal e "concepção" no Brasil. Reparará que, actualmente e em ambas as costas atlânticas, se escreve "recepção", "concepção", "respectivamente" e "aspecto". Estas divergências gráficas (fiquemo-nos por este aspecto e nem entremos no carácter irrestrito do conceito "facultatividade") são criadas pelo AO90.

 

Seguindo o raciocínio de Jorge Miranda, verifica-se que a aplicação do AO90 nos dois jornais oficiais conduzirá à situação contrária da por si defendida. Algo de errado se passa no raciocínio? Não. Algo de errado se passa no AO90. Entre a realidade das duplas grafias criadas pelo AO90 e o desiderato de Jorge Miranda "uma ortografia com um mínimo de diferenças revela-se indispensável" o fosso é enorme. Este fosso leva-me a partir do princípio de que a função de papel para forrar gavetas dos pareceres científicos solicitados pelo poder político foi devidamente cumprida: não foram lidos.

 

Pergunta Jorge Miranda: "Por que razão havia de ser o português europeu a determinar a língua escrita em confronto com o português do Brasil, usado por quase 200 milhões de pessoas?". O português europeu não deve determinar a forma escrita de qualquer outra das normas, nem qualquer dessas normas deve determinar a norma escrita do português europeu. Isto, em termos programáticos. Agora, quanto ao resto, no que diz respeito ao português europeu, já aqui se referiu o processo do vocalismo átono, factor importante e diferenciador de realidades da língua portuguesa.

 

Para que Jorge Miranda perceba o que é o processo do vocalismo átono, convido-o a fazer como na Idade Média: em vez de ler silenciosamente este texto, leia-o em voz alta e verifique que as sílabas na sua maioria são átonas e que, dessas átonas, praticamente todas são reduzidas.

 

Praticamente. Porque há excepções que podem ser marcadas por, imagine-se só, uma consoante não pronunciada. Como esta palavra que acabo de escrever: "excepções". A palavra "excepções" constitui uma excepção à regra, tal como a palavra excepção. Parece complicado, mas não é. Agora, se Jorge Miranda convidar um falante de português do Brasil a ler este texto em voz alta, descobrirá um admirável mundo novo. E descobrirá o porquê de "exceção" no Brasil e de "excepção" em Portugal.

 

Após nove anos de itinerância pela Europa institucional, confesso não ter percebido como é que através do AO90 se poderá "afirmar o português, o português internacional, na União Europeia", como refere Jorge Miranda. Através da introdução de "aspetos" e "conceções" que eram "aspectos" e "concepções" em Portugal e no Brasil e que agora só são "aspectos" e "concepções" no Brasil? Confesso que não percebo e admito que gostaria imenso de perceber.

 

* Autor de Demanda, Deriva, Desastre - os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, 2009.


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publicado por fmvalada às 19:00
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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