Sábado, 03 de Abril de 2010

 


“O Sol nasce e o Sol põe-se e visa o ponto donde volta a despontar”
Eclesiastes 1:5


“Não faz sentido vivermos de costas para o que é hoje o centro da lusofonia, que é o Brasil”
António Costa, director do Diário Económico, in PÚBLICO online, 30.01.2010

 

A segunda frase em epígrafe pressupõe uma modificação conceptual. Enquanto nos princípios da CPLP se podem ler preceitos como “igualdade soberana dos Estados membros” e “reciprocidade de tratamento” e nos seus objectivos se inclui “a materialização de projectos de promoção e difusão da língua portuguesa”, o director do Diário Económico preconiza uma abordagem completamente diferente. Michel Foucault considerou estas mudanças conceptuais como “cortes epistemológicos”. Na linguagem de Foucault, este conceito corresponde a uma mudança de paradigma, com consequências em todas as áreas do saber.

 

No século XVI, a obra de Copérnico De revolutionibus orbium coelestium propunha a teoria heliocêntrica, vindo a provocar uma alteração nos valores até então consagrados e desferindo um golpe misericordioso na concepção geocêntrica, exemplificada na minha referência ao Eclesiastes. Em suma, com Copérnico, a Terra deixava de ser o centro das atenções, passando esta e todo um conjunto de planetas a descrever uma órbita em redor da fonte da vida: o Sol. Caso tenham reparado, a teoria sobreviveu a Copérnico, pois a sua veracidade é mais do que comprovável. Apesar de me ter convencido, há quatro anos, durante um nascer do Sol no Deserto do Mojave, de que o o movimento de translação era do Sol relativamente à Terra e não o contrário, a minha convicção desse momento perderá sempre para a crua realidade copernicana, kepleriana e galileana. É certo e sabido, desde Galileu: eppur si muove! Contudo, António Costa convida-nos a um regresso ao passado, a um retrocesso epistemológico e a um novo tipo de centrismo: o jupitercentrismo linguístico.


Não concordando com a despromoção de Plutão a “anão”, justificada por a sua massa ser inferior, por exemplo, à massa da nossa Lua, devo realçar que esta despromoção me facilita os cálculos para o tema em apreço. O Sistema Solar é agora composto por oito planetas. A CPLP é composta por oito Estados-membros de pleno direito. A conhecida disposição dos oito planetas seria impossível sem o Sol e a CPLP não existiria sem a língua portuguesa. Em termos proporcionais, tendo em conta uma relação entre massa de corpos celestes e área ou dimensão populacional de países, Júpiter equivalerá ao Brasil e Urano a Portugal.

 

Pense-se no Sistema Solar e na posição de Júpiter relativamente ao Sol. E agora imagine-se uma grande revolução no Universo, em que o Sol e Júpiter trocam de posição. O facto de o Sistema deixar de ser Solar, para passar a Jupiteriano, é uma preocupação secundária. Não é o nome que aqui está em causa, nem a confusão orbital, nem a impossibilidade de o Sol poder ser capturado pelo campo gravitacional de Júpiter, nem a possibilidade de tal revolução implicar consequências inimagináveis na estrutura do Universo. No entanto, a improbabilidade de um astro com massa cerca de 333 mil vezes superior à da Terra girar em torno desta a uma distância média de cerca de 150 milhões de quilómetros foi uma verdade indesmentível. Até Copérnico.


Subitamente, eis que a Ciência se vê ignorada e ultrapassada pela opinião não sustentada. A partir do momento em que pensarmos a língua exclusivamente em termos de dimensão populacional, área territorial ou poder económico, abriremos as portas para a justificação da adopção de qualquer instrumento técnico, independentemente da sua péssima qualidade. Justificar-se-á, a esta luz e só a esta luz, o injustificável Acordo Ortográfico de 1990.

 

Não deve a língua portuguesa girar nem em redor do Brasil, nem de Portugal, nem de qualquer país. A língua portuguesa deve estar no centro das preocupações e é em torno dela que os argumentos devem gravitar. As mudanças em aspectos com ela relacionados podem ser de iniciativa política, mas a sua promoção deve ser corroborada por estudos científicos e não apoiada em argumentos que voguem pela arbitrariedade, pela discricionariedade e pela subjectividade. Caso contrário, a língua deixará de ser veículo de comunicação de todos, para passar a mais uma carta no baralho de um jogo dominado por um, mas em que todos saem perdedores; em vez de impulso civilizacional, passará a instrumento individual, quando constitui um património colectivo.

 

Considero nefasta e, em última análise, perniciosa uma mudança de paradigma, sem se preverem as consequências do corte epistemológico. Para se confirmar a validade da minha consideração, convido à leitura do Acordo Ortográfico de 1990 e dos comentários que o justificam e o elogiam. Perceber-se-á rapidamente que a defesa deste péssimo instrumento corresponde apenas a um inusitado e pouco recomendável regresso à Idade Média.


Adenda: Na minha crónica anterior (26/2/2010), houve uma nódoa no pano, um primus que caiu pessimamente antes do inter pares. Culpa minha, minha enorme culpa. Agradeço o reparo de Daniel Jesus, meu estimado amigo, colega e leitor. Agradecendo e corrigindo: “Julgávamos nós que a CPLP era uma comunidade de relações interpares”. O mundo moderno é moldado assim: quem erra deve analisar, corrigir e agradecer a correcção. Talvez não fosse má ideia os autores do Acordo Ortográfico de 1990 adoptarem este tipo de comportamento. Dispensa-se o agradecimento, mas a análise e as correcções são indispensáveis.


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publicado por fmvalada às 23:58
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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