Segunda-feira, 28 de Junho de 2010

 

"A crítica em Portugal é a de que os brasileiros estão mais interessados e se acham mais ávidos porque os portugueses vão ter que alterar mais do que os brasileiros. Não é verdade. Quem diz isso não leu o acordo"

Evanildo Bechara, entrevistado por Fabiana Godoy, PÚBLICO, 10/6/2010

 

Em entrevista ao PÚBLICO (10/6/2010), Evanildo Bechara, “considerado o pai do acordo ortográfico no Brasil”, produz afirmações graves, como a que surge em epígrafe. Nada de surpreendente, vindo de quem, em declarações à Folha de S.Paulo (6/8/2009), chamou “balela” à crítica fundamentada da falta do vocabulário ortográfico comum, previsto no artigo 2.º do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90). Esse vocabulário deveria ter sido elaborado até um ano antes da entrada em vigor do AO 90, conforme então prevista no artigo 3.º. As datas são claras e não requerem relevante formação jurídica para a sua interpretação: 1 de Janeiro de 1993 para o vocabulário e 1 de Janeiro de 1994 para a entrada em vigor. Claríssimas como água. O Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa dá uma nova redacção ao artigo 3.º, relativamente à entrada em vigor do AO 90, mas o artigo 2.º mantém-se inalterado.

 

De um gramático e filólogo, apenas espero uma resposta esclarecedora, académica e científica e não uma “balela” para atirar a conversa para canto ou para escanteio, dependendo da norma escolhida. De Bechara, que acuso publicamente de contribuir para a destruição da norma ortográfica do português europeu, exijo uma resposta digna de um académico (com explicações, remissões e referências) e não que despache o assunto como se lhe estivessem a perguntar as horas e não tivesse nem tempo, nem paciência, nem relógio para responder.

 

Mas concentremo-nos na recente entrevista ao PÚBLICO. Afirma Bechara que quem diz terem os portugueses “que alterar mais do que os brasileiros (...) não leu o acordo”. Quem nitidamente não leu o AO 90, nomeadamente a Nota Explicativa, quando avança percentagens que não requerem formação em estatística para serem percebidas, foi Bechara. Não repetirei argumentos sobre cálculos, já alhures desmascarados e inclusive publicamente comprovada a sua inexactidão por responsáveis pela execução técnica do AO 90. Contudo, para que não restem dúvidas, transcrevo, na simplicidade de uma frase, informação ignorada ou omitida por Bechara e veiculada pelo Ministério da Educação do Brasil: “A unificação da ortografia acarretará alterações na forma de escrita em 1,6% do vocabulário usado em Portugal e de 0,5%, no Brasil”.

 

Um académico desactualizado e desinformado é um académico que transmite informações erradas. Citá-lo em contexto académico constitui um exercício extremamente perigoso. Não recomendo. Bechara refere, entre os “pontos em que havia desacordo”, a existência “em Portugal” [sic] de “consoantes que não se articulam, como por exemplo ‘director’”. Bechara deveria saber que há mais vida para além da mera articulação. Bechara não leu Maria Raquel Delgado Martins, quando refere, em Ouvir Falar – Introdução à Fonética do Português, entre as excepções à regra de redução vocálica, as marcadas ortograficamente por acento agudo ou “por uma consoante muda etimológica, como em baptismo ou director”. Director, professor Bechara. Director!

 

Bechara não leu Ivo Castro e Inês Duarte, em A Demanda da Ortografia Portuguesa, quando realçam que no português europeu “a presença de uma consoante etimológica constitui (...) uma instrução que indica que se está perante um caso excepcional em que o timbre da vogal não é alterado”, nem ouviu Antônio Houaiss, no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 10/12/1990, quando disse: “[esse c] em Portugal, ele tem valor diacrítico”.

 

Diacrítico, para quem não souber, vem do grego διακρητικός e significa, entre outras coisas, “sinal gráfico que permite distinguir a modulação das vogais”, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, organizado por João Malaca Casteleiro e prestes a desactualizar-se, por iniciativa e publicidade do seu organizador, apesar de a 1.ª edição (2001) ter menos de dez anos de idade. Se Fabiana Godoy me tivesse perguntado acerca do “gasto desnecessário de dinheiro” e da “imposição das academias”, teria sido esta a minha resposta.

 

Com uma aplicação do AO 90, a norma ortográfica do português europeu finda, como diria o João da Ega, por dispersão e insensivelmente. As conclusões de Martins, Castro, Duarte e Houaiss deixarão de ser verdade, não porque haja qualquer erro científico nas suas conclusões, antes pelo contrário, mas devido a um processo puramente administrativo e absolutamente anticientífico. Como se Vénus pudesse passar a ter uma rotação no mesmo sentido da rotação da Terra apenas porque a administração Obama assim determinasse e a NASA em conformidade obedecesse.

 

Bechara pergunta: “Como é que uma criança que está começando a escrever em Português vai escrever ‘Egipto’ se ela não ouve este p?”. Ficar-me-ia mal aconselhar a leitura de livros e artigos científicos sobre o tema, a um académico que os deveria conhecer melhor do que eu. Mas como é evidente que não os leu, recomendo vivamente a sua leitura. Agora, pergunto eu: como é que uma criança que está a começar a escrever em português vai escrever “homem” se ela não ouve este h e como é que essa criança vai diferenciar o (cito da Base V do AO 90) “emprego do e e do i, assim como o do o e do u, em sílaba átona”, como em “cardeal” e “cordial”, “mágoa” e “tábua”? Perdei meia hora do vosso precioso tempo, professor Bechara, e respondei-me a estas dúvidas dilacerantes. Embora as respostas se encontrem nas Bases II e V do AO 90, por vós aparentemente desconhecidas (“por força da etimologia”, “pela etimologia e por particularidades da história das palavras”, por “condições etimológicas e histórico-fonéticas”), podeis dispor de argumentos adicionais.

 

Respondei-me, professor Bechara, com argumentos científicos, daqueles que surgem em livros, teses, artigos, aulas, debates e seminários. Mas não chameis “balela” a coisas sérias e que dizem respeito a todos os que escrevem e lêem. Se não conseguis defender o AO 90 na vossa área de conhecimento, não tenteis desviar a conversa para foros de indelicadeza, dizendo que “os portugueses sempre se consideraram os donos da língua”. De outro modo, devo concluir que “balela” é todo o processo do AO 90. Para bem da nossa língua, espero estar enganado. Contudo, lamentavelmente, quer-me parecer que não estou.


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publicado por fmvalada às 21:51
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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