Segunda-feira, 23 de Agosto de 2010

 

“Ainda me lembro, fotograficamente, do revisor do jornal, elogiando a minha prosa”

Jaime Bernardes, “E o meu sofrido português, como fica?”, Expresso, 16/08/2010 (1)

 

Ao falar-se sobre o Acordo Ortográfico, não se deve tratá-lo com o estilo e a abordagem nem da compaixão pelo sofrimento de As Terças com Morrie, nem da complacência pelo adultério de As Pontes de Madison County. Confesso que li os dois livros, que desaconselho em termos formais, mas que ajudam a ver a floresta escondida por detrás do discurso lamecha e com o seu quê de autopsicografia (vamos falar de Pessoa, não tarda nada). Por isso, bem vistas as coisas, até aconselho.

 

O Expresso, como se sabe, pela sua teoria arrancada ao éter, poupa letras. Como se depreende da sua redacção actual, gasta acentos e admite facultatividades na capitalização, violando na prática as Bases do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), que defende em Editorial. Por lhe faltarem autoridades com argumentos sólidos, recorre a textos de profundidade emotiva. Eu choraria convulsivamente perante o texto de Jaime Bernardes, não fosse o AO 90 assunto demasiado sério para perder tempo com choradeiras. A diferença é que eu li o AO 90 e aí reside a fronteira entre um choro gratuito e uma cabeça esclarecida.

 

Jaime Bernardes escreve um texto que o Expresso apoda de “comentário”. Há uns anos, Ivo Castro e Inês Duarte escreveram um “Comentário do Acordo” (de 1986) e não divagaram. Um comentário situa-se entre uma análise e uma divagação, tendendo muito para a primeira e pouco para a segunda. Para o Expresso é igual. Tanto faz como fez. Os méritos do Comentário de Castro & Duarte são ignorados pelo Expresso, que prefere divulgar o “comentário” de Bernardes.

 

A palavra “ortografia” não faz parte do “comentário” de Bernardes. A palavra “Base” está ausente. A palavra “consoante” também. Bernardes tem uma opinião pessoal. Não se pode nem defender nem atacar um instrumento científico com opiniões pessoais não sustentadas. Há teses de doutoramento sobre ortografia, há artigos científicos sobre a dita. O texto de Bernardes não é um comentário sobre o AO 90: trata-se de uma pura, mera e simples divagação.

 

Aliás, a única referência à ortografia no escrito em apreço é a seguinte: “Em 1967,  começaram por tirar da língua escrita um montão de acentos desnecessários, embora tenham ido buscar e instituído o trema, um lapso inexplicável para quem, inteligentemente, passou a considerar, em definitivo, o português como a língua do Brasil.” Trata-se de uma opinião inteiramente subjectiva e descosida. Não existe qualquer análise, apenas se adjectivam os acentos (“desnecessários”) e se comenta a acção da instituição do trema (“lapso inexplicável”). O porquê é um enigma. A razão, um mistério.

 

Quando se começa um comentário sobre ortografia com a citação de Bernardo Soares “A minha pátria é a língua portuguesa”, o resto é previsível. Se Copérnico tivesse começado o seu texto revolucionário citando o Eclesiastes, estaria tudo perdido. Como Bernardes gosta desta frase de Soares, devemos depreender que ele ama a língua portuguesa. Como defende o AO 90, pretenderá que quem o defende ama a língua portuguesa. Pior: depreenderá que quem o ataca não ama a língua portuguesa.

 

Se eu começasse um texto sobre o AO 90 com a citação “Philosophia deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta sobre bases clássicas ou pseudoclássicas”, o que diria Bernardes? O autor da citação é Fernando Pessoa. Em que ficamos? Quem acha que Filosofia se deve escrever “com duas vezes” F não ama a língua portuguesa? O autor é o mesmo, embora haja um heterónimo de permeio.

 

Bernardes continua o seu texto, afirmando que “para os portugueses eu passei a falar à brasileira, enquanto que [sic] para os brasileiros continuei a falar à portuguesa”. Afinal não se trata de um comentário do AO 90, pois Bernardes teima em falar sobre tudo, evitando a ortografia. Adianta ainda que, antes de determinado programa de rádio, dois brasileiros e dois portugueses “discutiam todos os dias quais as palavras mais normais e supostamente mais compreensíveis tanto para portugueses como brasileiros”. Cá temos: léxico. Léxico em vez de ortografia. Continua a senda dos comentários sobre um tema sem se referir o tema.

 

Este texto de Bernardes é o arquétipo da defesa possível do AO 90, perante o descalabro da sua aplicação, apoiada na divagação, na elogiosa referência autobiográfica (ver a epígrafe) e na menção ao sofrimento como derradeiros recursos, uma vez que o rigor não lhe vale. Portugal assim não vai lá e a língua portuguesa muito menos. A fase da Deriva já passou. Estamos no momento do Desastre.

 

Nota: agradeço a Nuno Ferreira, meu antigo colega de curso e Amigo, a chamada de atenção para este texto, que, de outro modo, me teria passado despercebido.

 

Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)

 

1) http://aeiou.expresso.pt/e-o-meu-sofrido-portugues=f599319


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publicado por fmvalada às 21:35
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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