Segunda-feira, 20 de Dezembro de 2010

 

Se os especialistas querem ajudar ao debate, a melhor maneira de o fazer não é exigir-lhe que termine

Rui Tavares, PÚBLICO, 02.12.2006

 

Isso que está a fazer, a escrever assim, à mão, é-lhe possível porque existe uma pequena área no seu cérebro que guardou memória gráfica das palavras. É por isso que às vezes escreve uma palavra à mão, para ver como lhe parece correcto, mesmo quando está a escrever no computador

Alexandre Castro-Caldas, depoimento recolhido por Clara Barata, PÚBLICA, 31.10.2010

 

Em 02.12.2006, Rui Tavares escreveu no PÚBLICO um dos mais lúcidos e abrangentes artigos de opinião sobre a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário, a famigerada TLEBS. Entre várias reflexões contidas nessa crónica, distingo a seguinte: “Se os estudantes desconhecerem os materiais de que é feita a língua, não só nunca atingirão as alturas do mosteiro da Batalha (ou d’Os Maias), como terão dificuldades em ler um artigo de jornal ou em escrever uma carta de reclamação.” Contudo, a propósito do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), Rui Tavares anunciou recentemente que “escrever é agora para mim um exercício de ouvido. O cérebro procura lembrar-se de como a língua pronuncia aquela palavra, tenta ouvi-la dentro da cabeça, para depois a poder escrever” (PÚBLICO, 27.10.2010).

 

Através desta segunda perspectiva, é possível conjecturar-se que, apesar de conhecer os “materiais de que é feita a língua”, Rui Tavares não considera nem as etapas da aquisição da leitura, nem os parâmetros indissociáveis do conhecimento da ortografia. De outro modo, não defenderia, como vem defendendo, de forma cientificamente tão desprendida, o indefensável AO 90, recorrendo a curiosos exercícios de pronunciação (“Eu digo aquele ‘c’ em espectador e aquele ‘p’ em conceptual? Se sim, escrevo-o. Se não, omito-o”). Na última fase da aquisição da leitura (a fase ortográfi ca), recorre-se à memória lexical, sem se passar por regras de conversão, e o mesmo se aplica à escrita, como se percebe das palavras de Castro-Caldas acima citadas.

 

Com que “materiais” se constrói e que parâmetros se envolvem no conhecimento da ortografia? Em 1988, Philip Luelsdorff enunciou-os de forma muito clara: fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e ortografia (incluindo morfografémica). Terá reparado o leitor na ausência de termo tão caro aos autores e promotores do AO 90: fonética. Ao AO 90 faltam bases teóricas, exercícios empíricos, referências científicas. Numa área tão desenvolvida pelo mundo académico, a existência de um instrumento sem referências a estudos leva a que, à partida, se preveja o desastre e, após leitura, se confirme a suspeita.

 

Rui Tavares incorre num erro, propagado por alguma opinião pública, apesar de tanto se ter escrito e dito sobre o assunto. Quando afirma “escrever é agora para mim um exercício de ouvido”, esquece-se de dois factores importantes: o alfabeto latino não é mero vector dos sons da fala e, ao analisar-se com rigor e minúcia o potencial impacto de alterações de um código ortográfico, devem ter-se em conta duas direcções – a da escrita e a da leitura.

 

Comecemos pela direcção da escrita. Por escreverem “de ouvido”, os autores do AO 90 escreveram “insersão” em vez de “inserção”, no título do ponto 7.1 da Nota Explicativa. Este erro foi mencionado por Maria Helena Mira Mateus, num parecer datado de 28.10.2005 e recebido em 31.10.2005 pelo Instituto Camões. Lamentavelmente, este erro manteve-se numa edição de Janeiro de 2009 da Imprensa Nacional–Casa da Moeda. Talvez por distracção, o parecer de Mateus não foi lido nem adoptado por quem o deveria ter feito. Terá sido confundido com papel para forrar gavetas.

 

Passemos à direcção da leitura. Lanço um repto a Rui Tavares: imagine-se membro da categoria “lusitanistas estrangeiros” (expressão do AO 90) e tente pronunciar todas as palavras afectadas pela base IX, 3.º do AO 90 (e.g. “diapnoico”, “dicroico” e “dipnoico”). Fiz recentemente a experiência com profissionais cujo domínio da língua portuguesa está acima de qualquer suspeita e nenhum ousou arriscar a pronunciação com certeza absoluta. E não eram “lusitanistas estrangeiros”, eram portugueses.

 

Pelo contrário, na norma actual, não há qualquer dúvida: o acento marca a abertura do timbre. Excepções? Duas: “comboio” e “dezoito”. Porquê? Convido à leitura do último parágrafo da página 76 do livro que escrevi sobre a matéria em apreço. Garanto que, ao contrário de Malaca Casteleiro e de Dinis Correia, serei sempre incapaz de justificar regras com excepções, como estes autores fizeram na página 18 do opúsculo Atual.

 

Um dos flagelos promovidos pelo AO 90 diz respeito ao aumento de homografias e de homonímias potenciais e reais. Em vez de me debruçar sobre uma “potencial” homonímia, menciono uma homonímia real, criada pelo AO 90 através da supressão do “p” de “óptica”, com a concomitante ambiguidade trazida para o significado “osteodistrofia da cápsula ótica”. Antes do AO 90, apenas ficaria na dúvida um leigo em medicina e utilizador da norma ortográfica do português do Brasil, vacilando entre dois consultórios: o do oftalmologista e o do otorrinolaringologista.

A partir do AO 90, essa ambiguidade estender-se-á a todos os leigos em medicina que escrevam ou leiam em português, independentemente da norma. A otosclerose (significante do significado supra) só afecta algumas pessoas, tem tratamento e não é contagiosa. Ao contrário do AO 90.

Nem o AO 90 se limita à supressão consonântica, nem o papel das consoantes se limita à pronunciação. Se há qualidade a atribuir às consoantes é a de não se limitarem a ser pronunciadas. Sobre esse tema já me debrucei em artigos anteriores: só não os leu quem não quis. Mas poderei voltar à carga. Tal como Rui Tavares, sou a favor de um debate esclarecedor. Nisso, estamos de acordo. Pelo contrário, o Poder solicitou pareceres que não leu e convidou especialistas que não escutou.

 

Em última análise, esse comportamento levou à errada conjectura da actual ministra da Cultura e do seu antecessor de que “facto” não manterá o “c”. Se debate tivesse havido, teriam descoberto, quer uma, quer outro, o “c” de facto, a labiríntica base IV e outras curiosidades, entre as quais se encontra o carácter inadequado do AO 90 para a norma do português europeu. A atitude do “essa discussão já foi feita para trás, não vamos voltar a ela” substituiu a demanda em prol da verdade e a procura de decisões sensatas em nome dos sujeitos escolarizados em sociedades grafocêntricas, ou seja, de todos nós.

 

Espera-se que, ao contrário do sucedido em 1327, num certo mosteiro beneditino no Norte de Itália, o debate não se fique pelo aspecto formal. Já não estamos na Idade Média, embora às vezes pareça.


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publicado por fmvalada às 19:34
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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