Sábado, 25 de Junho de 2011

 

 

 

 

Senhor Primeiro-Ministro
Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros
Senhor Ministro da Educação, do Ensino Superior e da Ciência

 

 

1. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO) foi aprovado em 1990 pelo Parlamento e ratificado pelo Presidente da República em 91, sendo mera adaptação do Acordo de 86, abandonado por força da reacção da opinião pública portuguesa. Ao contrário do AO de 86, que teve divulgação nos meios de comunicação portugueses, a redacção e tramitação do AO de 90 ocorreram discretamente, longe do olhar e escrutínio público dos portugueses.

 

2. Enquanto reforma ortográfica, o AO é um desastre: não assenta em nenhum consenso alargado, não foi objecto de discussão pública, não resulta do trabalho de especialistas competentes (a julgar pelas imprecisões, erros e inconsistências que contém e pelos problemas que cria) e vem minar, pela introdução generalizada e irrestrita de facultatividades ortográficas, a própria noção de ortografia. Tudo isto foi devidamente apontado por intelectuais e linguistas portugueses ao longo dos últimos 20 anos em pareceres, artigos e livros ignorados pelas entidades responsáveis. O único parecer favorável (assinado em 2005 por um dos co-autores do AO!) é o da Academia das Ciências, instituição que patrocinou a criação do acordo.

 

3. Os vícios do AO enquanto instrumento jurídico configuram mentiras gritantes vertidas em lei. No preâmbulo diz-se que "o texto do Acordo que ora se aprova resulta de um aprofundado debate nos países signatários"; deste debate não há vestígio nem se conhece menção. A Nota Explicativa do AO refere estudos prévios dos quais não há registo, apresenta argumentos sem sustentação científica sobre o impacto do AO no vocabulário português (baseados numa lista desconhecida de 110 000 palavras e ignorando a importância de termos complexos, formas flexionadas de nomes e verbos e índice de frequência das palavras) e "explica" de forma confusa os aspectos mais controversos da reforma, p. ex. a consagração, como expediente de "unificação ortográfica", de divergências luso-brasileiras inultrapassáveis com o estatuto de grafias facultativas. Algumas dessas divergências existiam antes do AO ("fato" ~ "facto", "ação" ~ "acção", "cômodo" ~ "cómodo", "prêmio" ~ "prémio", "averígua" ~ "averigua", etc.); outras são criadas pelo próprio AO ("decepção" ~ "deceção", "espectador" ~ "espetador", "falamos ~ "falámos", "Filosofia" ~ "filosofia", "cor-de-rosa" ~ "cor de laranja", etc.). Pelo AO a palavra "decepcionámos" (e outras similares) passaria a escrever-se correctamente em todos os países lusófonos de quatro maneiras diferentes ("decepcionámos", "dececionámos", "decepcionamos", "dececionamos"). O termo "Electrotecnia e Electrónica" (designação de curso, disciplina e área do saber) poderia ser escrito de 32 maneiras diferentes, sem que o AO ofereça qualquer critério normativo. Sendo um tratado entre oito estados soberanos que reivindicam uma matriz cultural partilhada, o AO deveria ter concitado aceitação plena de (e em) todos os países signatários. Tal não aconteceu, o que, 21 anos após a sua assinatura, é prova dos problemas por ele criados.

 

4. Da VI Reunião Extraordinária do Conselho de Ministros da CPLP de 2010 resultou a Resolução sobre o Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, com a seguinte recomendação (III.5): "Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos os sistemas educativos." Esta recomendação destitui, por si só, o AO de qualquer fundamento: como se pode defender simultaneamente um acordo que pretende unificar as tradições ortográficas vigentes nos Estados signatários através de facultatividades gráficas, e, ao mesmo tempo, propor-se que o problema das grafias facultativas se resolva pelo reconhecimento oficial de tradições ortográficas divergentes, logo, não unificadas?

 

5. Ninguém conhece as consequências reais do AO na sociedade portuguesa, pois nenhum estudo de avaliação de impacto foi feito e ninguém sabe estimar os custos da sua aplicação - que não serão só de ordem financeira - pois não há estudos de avaliação custo/benefício. Se os grandes projectos de Estado exigem a realização de estudos preparatórios - recorde-se que o aeroporto da Ota foi, após 30 anos de indecisão, abandonado por causa de um estudo técnico -, como se pode exigir menos relativamente à língua portuguesa escrita? A Lei de Bases de Protecção do Património Cultural inclui no conceito e âmbito do património cultural a língua portuguesa, nestes termos: "enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do património cultural português." (art.º 2.º, n.º 2). É menos importante a estabilidade de um "fundamento da soberania nacional" do que um aeroporto?

 

6. Que o Estado português se proponha adoptar o AO sem um vocabulário normativo que não seja o vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa estipulado pelo art.º 2.º do AO (violando assim um tratado que assinou e ratificou) revela apenas a ligeireza com que esta matéria tem sido tratada e a incontrolada flexibilidade da aplicação prática do AO. Afinal, nenhum tratado internacional pode ficar sujeito a interpretações locais ou aplicações de carácter regional ou nacional.

 

7. O domínio da ortografia, sabe-se hoje, faz parte intrínseca da competência linguística dos falantes; não é simples "roupagem gráfica" da língua. E, como é reconhecido não só por académicos mas por instituições internacionais como, p. ex., a OCDE no relatório PISA 2003, a literacia - pedra angular da aquisição de todos os saberes formais e de todo e qualquer processo de aprendizagem escolar - pressupõe (em termos linguísticos estritos) o domínio de uma ortografia codificada estável, para além de um vasto conhecimento vocabular, gramatical e fonético.

 

8. O AO não serve o fim a que se destina - a unificação ortográfica da língua portuguesa - e assenta no pressuposto falacioso de que a unificação ortográfica supriria as diferenças já antigas entre português europeu e português do Brasil, de ordem fonológica, lexical e sintáctica. Mesmo que a unificação a 100% fosse possível (e o AO reconhece que não é), escrever de igual forma dos dois lados do Atlântico não assegura a compreensão mútua daquilo que é (cada vez mais) diferente e divergente.

 

9. Por atentar contra a estabilidade ortográfica em Portugal e integridade da língua portuguesa, o AO atenta contra o progresso e desenvolvimento do povo português em época particularmente difícil da sua História.

 

10. O AO é um erro monstruoso que VV. EE. têm o poder de corrigir, suspendendo a sua aplicação.

 

João Roque Dias - Tradutor certificado pela Associação Americana de Tradutores

 

António Emiliano - Professor de Linguística da UNL, autor de Fonética do Português Europeu e de Apologia do Desacordo Ortográfico

 

Francisco Miguel Valada - Intérprete de conferência junto das instituições da UE, autor de Demanda, Deriva, Desastre - Os Três Dês do Acordo Ortográfico

 

Maria do Carmo Vieira - Professora de Português e Francês, autora de O Ensino do Português



publicado por fmvalada às 18:28
Domingo, 19 de Junho de 2011

 

Quia parvus error in principio magnus est in fine
S. Tomás de Aquino, De ente et essentia

 

Há alguns meses, após ter apresentado uma comunicação no Instituto Franco-Português, em Lisboa, em seminário organizado pela União Latina,  fui publicamente confrontado pelo senhor embaixador Lauro Moreira, defensor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) e então embaixador do  Brasil junto da CPLP, com o facto de insistentemente me referir à supressão do acento da flexão verbal “pára”. Tratava-se de reacção ao exemplo de que me munira: um título do PÚBLICO de 13/4/2009 (“Bloqueio nos fundos da UE pára projecto de milhões na área do regadio”). Após supressão do acento agudo, tal como prescrito pelo AO 90 na sua base IX, 9.º, qualquer leitor poderia ser induzido em erro, pois “para” tanto poderia ser preposição, como flexão verbal, com óbvias consequências sintácticas e semânticas de tal “simplificação” na frase em apreço.

 

Nesse longínquo mês de Novembro de 2009, recorri a uma ficção para ilustrar as consequências nefastas noutros planos, para além do grafofonémico. Infelizmente, com a adopção acrítica, obediente e arbitrária do AO 90 por parte de alguns meios de comunicação social, a  comedida simulação deu lugar a uma perceptível realidade. Um exemplo recente da RTP põe em causa valores fundamentais do elementar bom senso. Aparentemente, os comboios adquiriram o direito à greve.

 

Com “greve na CP para comboios em todo o país”, como se pode ler em notícia da RTP, estamos perante a descarrilada hipótese de os comboios poderem fazer greve. Admite-se, desta forma, que a greve se aplique aos comboios e não a quem é responsável pela sua circulação, independentemente da forma verbal elíptica (neste caso, “convocada”). Assim, considerando que “para” funciona na perfeição como preposição, a frase “convocada greve na CP para comboios em todo o país” é perfeitamente plausível. Poderia ser gralha, mas não é. É determinação do AO 90.

 

Mais lamentável do que a ambiguidade criada pelo AO 90 é o avanço impetuoso para a aplicação de lei tão defeituosa, sem conjuntamente se reflectir de forma séria, serena e ponderada acerca duma ampla revisão da mesma ou do seu completo abandono. A aplicação do AO 90 é claramente promovida por quem sobre esta matéria nem lê o que sobre ela se escreve, nem escuta os argumentos que sobre esta se aduzem. Parecerá um paradoxo dizer-se que só quem não lê pode impor a aplicação de um instrumento para facilitar a leitura, mas que efectiva e objectivamente a complica. Pode parecer absurdo, mas é o que se passa no início do segundo decénio do século XXI, num país chamado Portugal.

 

No PÚBLICO de 7/6/2011, José Mário Costa responde ao editorial da direcção do PÚBLICO de 4/6/.2001. Relativamente a “sector”, estranho que José Mário Costa defenda a dupla grafia, socorrendo-se da transcrição fonética. Apesar de o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora atestar ambas as formas, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências limita-se à transcrição com oclusiva velar [k]. Basear um instrumento ortográfico num “critério fonético (ou da pronúncia)” e alicerçá-lo em transcrições fonéticas, atribuindo-lhes carácter prescritivo, é escorar um erro com outro erro.


Recordo que o facto de em “sector” a consoante C ter valor de acento continua a não ser considerado, quando se trata de componente essencial  das importantes excepções ao processo do vocalismo átono do português europeu. Uma primeira hipótese é o facto de o processo ser desconsiderado. Uma segunda hipótese não se limita à desconsideração do processo, mas à do próprio português europeu.

 

Concordo em absoluto com José Mário Costa, quando afirma: “Faça-se a discussão como outros fizeram, com argumentos sérios e sustentados.” Contudo, o argumento não colhe, por inexistência de árbitro isento que valide o argumento pela seriedade e pela sustentação. A manutenção, a promoção e, pior, o carácter impositivo de um instrumento inadequado à realidade do português europeu é a prova cabal do que acabo de escrever.

 

Afirma José Mário Costa que “a ortografia […] em nada contende com as componentes fundamentais da língua”. Trata-se de um espectacular argumento contra o AO 90, defendido por um seu protector e promotor. Com toda a naturalidade o escrevo, pois já alhures utilizei este mesmo argumento, com menção ao paradoxo. Para José Mário Costa perceber onde quero chegar e para entender a disparidade entre o por si escrito e o por si defendido, desafio-o a substituir “ortografia” por “base IX, 9.º, do Acordo Ortográfi co de 1990”. Verificará, sem grandes dificuldades, o facto de a bota não dar com a perdigota.

 

Quando S. Tomás de Aquino, no De ente et essentia, remetia para o Acerca do Céu de Aristóteles, manifestava uma das grandes preocupações de todos aqueles que reflectem sobre os actos e as acções: o pequeno erro inicial resultará, no final, num enorme erro. Uma supressão perfeitamente arbitrária de um acento numa flexão verbal, tornando-a homógrafa de uma preposição, é esse pequeno erro inicial. Se a esta supressão juntarmos todas as supressões arbitrárias, temos o AO 90 como um conjunto de pequenos erros iniciais, que resultarão num erro final ainda maior do que o próprio: a sua adopção.

 

Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, 2009


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publicado por fmvalada às 00:00
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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