Quinta-feira, 24 de Novembro de 2011

 

 

 

“Sou um professor pensador, não preciso do programa para me dizer o que devo fazer. Os colegas que querem que o programa seja prescritivo e autoritário são meros funcionários”
Paulo Feytor Pinto, Jornal de Notícias, 27/3/2010

 

 

 

 

“O professor tem que saber e tem que cumprir as regras que lhe são ditadas”
Edviges Ferreira, Sociedade Civil, RTP, 13/1/2010

 

 

1. Aparentemente, terá passado despercebida a entrevista de Francisco José Viegas ao Correio da Manhã de 30/10/2011, em que o secretário de Estado da Cultura escancara a porta à revisão do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e impugna o conteúdo quer das actuais “acções de formação”, quer, em última análise, do próprio AO90. Sublinha Francisco José Viegas que embora o AO90 seja “irreversível não quer dizer que não seja corrigível”. O AO90 é corrigível. Houve um responsável político que o disse. É um facto. Resta saber se Francisco José Viegas, além de comunicar tal iniciativa ao Correio da Manhã, informou as escolas, o Governo e “todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo”, não esquecendo os redactores do Diário da República. Na ordem do dia, teremos, em conjectura e se tudo correr bem, além da reavaliação da base IV e da eliminação da base IX, a completa inutilidade das publicações actualmente saídas do Lince com amputação consonântica, mutilação diacrítica, hifenização arbitrária e facultatividade à vontade do freguês. Seria importante que este intuito de Francisco José Viegas passasse das páginas do Correio da Manhã para as mesas de trabalho do senhor ministro Nuno Crato e da senhora presidente da Associação de Professores de Português (APP), Edviges Ferreira.

 

2. Em entrevista à Única do Expresso de 3/9/2011, Nuno Crato alegava que o AO90 “é um facto. Como disse salvo erro o ministro dos Negócios Estrangeiros, neste momento não é uma questão de opinião”. Antes pelo contrário. Enquanto o desígnio de Francisco José Viegas não se concretizar, o texto em apreço será sempre uma súmula de opiniões órfãs e descosidas e não uma colectânea de factos comprováveis. Desafio o senhor ministro a ler a alínea c) do ponto 4.2 da Nota Explicativa e a exigir: i) estudos sobre o “enorme esforço de memorização” das crianças de 6-7 anos diante dos P de recepção e C de selecção pré-AO90; ii) estudos que comprovem um menor “esforço de memorização” perante o “-eção” da receção AO90 e o “-essão” da recessão comum; iii) averiguar se esse “esforço de memorização” levou os autores do AO90 à criação, na base IV, 1.º, b), do espectro que ensombrou a recta final do século XX: a enigmática figura da letra C em aflição e em aflito…

 

3. Há dois meses, assustei-me com o formidável objectivo que Edviges Ferreira pretende obstinadamente atingir: “Penalizar os seus alunos que escreverem com a antiga grafia” (PÚBLICO, 8/9/2011). Aparentemente, nada demove a presidente da APP da exemplar aplicação dos respectivos e correspondentes correctivos, nem sequer a nota ministerial de 6/9/2011 a determinar que se “considerarão como válidas exclusivamente as regras definidas pelo AO a partir dos anos letivos [sic]” 2013-14 (6.º ano) e 2014-15 (4.º, 9.º, 11.º e 12.º anos). Seis dias depois, a presidente da APP voltava à carga no Correio da Manhã (12/9/2011), num registo mais suave, sem soar a palmatória: “Entendo que se deve penalizar os erros, mas isso fica ao critério dos professores” . As regras determinam 13-14 e 14-15, mas Edviges Ferreira quer fugir para a frente e começar a castigar de rompante, em 11-12, sem vocabulário ortográfico estável, sem acções de formação esclarecedoras, sem consideração ponderada, séria e objectiva dos pareceres científicos.

 

4. Assegurava a presidente da APP, na edição de 7/9/2011 do Jornal de Letras, que “contra as mudanças há sempre muitos “velhos do Restelo”". Sempre me surpreendeu o silêncio com que os especialistas em estudos camonianos reagem a este tropo recorrente: o Velho do Restelo vem invariavelmente à tona para silenciar a opinião contrária. Em vez de se discutir, debater e esclarecer, emerge o venerando homem e afunda-se a discussão. Na estrofe 94 do Canto IV d”Os Lusíadas, não é prestada qualquer informação sobre o mister da personagem. Durante a prelecção a que se dedica (estrofes 95-104), apesar de revelar aptidão para discorrer sobre mitologia, geografia e actualidade de finais do século XV, o Velho do Restelo não alude a qualquer aspecto cartográfico, não se pronuncia sobre a construção e a reparação das naus, remetendo-se a um prudente silêncio acerca de instrumentos náuticos, cálculos matemáticos e cosmográficos. Temos a certeza de que a opinião do “Velho do Restelo” não é uma opinião técnica avalizada. Pelo contrário, “contra as mudanças” foram elaborados pareceres, milagrosamente desencarcerados da gaveta onde se encontravam a acumular bolor, graças à acção da senhora deputada Zita Seabra. Reduzir quem se dedica ao estudo das escritas de base alfabética à condição de Velho do Restelo é inaceitável. Gregory Bateson (a propósito do “órgão da linguagem”) recomendava prudência na leitura das metáforas de Noam Chomsky. O mesmo conselho fica para quem envereda pelo atalho da menção àquele que, do cais, com voz peſada hum pouco aleuantando, se limitou a reflectir uma opinião não especializada sobre a gesta.

 

5. Teria Paulo Feytor Pinto (ex-presidente da APP) abandonado a óptica do “basta uma meia hora para os professores aprenderem as novas regras. E depois é aplicá-las” (PÚBLICO, 2/9/2009)? Teria sido anunciado que Paulo Feytor Pinto subscrevera a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (http://ilcao.cedilha.net/)? “Regras com ambiguidades que abrem a porta a arbitrariedades e que, por isso, são uma ameaça à transparência” (PÚBLICO, 8/9/2011) seria a solução do enigma defina as bases IV e IX do AO90 em termos técnicos e em dezoito palavras. O repto era, afinal, outro.


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publicado por fmvalada às 14:54
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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