Sábado, 05 de Maio de 2012


Escrever-se hão iniciaes maiúsculas em meio de períodos ou orações gramaticais, nos seguintes casos (…) f) Nomes dos meses 

Diário do Governo n.º 213, 12 de Setembro de 1911, p. 3850 

 

1. Em 1903, no prefácio de Portugais • phonétique et phonologie • morphologie • textes, advertia Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, acerca dos escritos que encerram a obra: “Les lecteurs seront surpris de rencontrer dans les textes des contradictions et des irrégularités orthographiques. J’ai gardé l’orthographe de chaque écrivain, à fin de mettre sous leurs yeux l’état anarchique où elle se trouve”.  Surpreendido  ficaria decerto Gonçalves Viana se pudesse apreciar as actuais contradições e o actual estado anárquico da ortografia portuguesa, passados mais de cento e nove anos sobre aquelas linhas e quase cento e um anos sobre a entrada em vigor da “sua” reforma.

 

Mais surpreendido ficaria se lhe contassem que a causa do regresso às contradições e irregularidades fora uma reforma disfarçada de acordo. Soubera ainda Gonçalves Viana que o próprio Estado promotor desse acordo era dos primeiros a dar exemplos claros da anarquia ortográfica (ou “mixórdia acordesa”, como prudentemente lhe chamou António Emiliano, no PÚBLICO de 19/4/2012) e ficaria decerto com o semblante carregado de estupefacção.

 

Ao abrirmos a página da Internet do Governo português, duas setas ajudam-nos a folhear cinco imagens, correspondendo a maioria destas a uma fotografia do primeiro-ministro, só ou acompanhado, com uma citação alusiva à actualidade. Por debaixo deste pequeno álbum, surge uma rubrica intitulada “em destaque”, imediatamente seguida pelo repositório que despertará o nosso interesse, composto por duas ligações: uma à esquerda, a outra à direita. A da esquerda é uma recomendação: “mantenha-se atualizado [sic]”. Resolvamo-la de uma penada, ignorando serenamente o seu conteúdo, tão serenamente como o Estado ignorou o recheio dos pareceres de Ivo Castro, Inês Duarte e Maria Helena Mira Mateus, e concentremo-nos na ligação da direita: “documentos oficiais”.

 

Quando um documento obtém chancela oficial, sabemos que não se trata nem de gatafunhos rabiscados num rascunho, nem de documento de sessão, nem de roteiro de um trabalho em curso. Sendo oficial, representa a peremptória palavra do Poder. Sendo oficial, é solene e sério. Dos documentos oficiais disponíveis na ligação mencionada, debrucemo-nos apenas na Resolução da CPLP sobre a Situação na Guiné-Bissau (doravante, Resolução), assinada em Lisboa, em 14/4/2012. O estatuto oficial deste documento, remate de um mosaico composto por textos desastrosos do ponto de vista ortográfico (recordo que, em Portugal, quem define a ortografia é o Estado), demonstra que os conceitos heterografia, mixórdia ortográfica e estado de anarquia ortográfica infectaram a grafia oficial. Em teoria, previra-se esta situação com o texto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Na prática, o relatório do Orçamento do Estado para 2012 demonstrara-a. Entretanto, o Diário da República e o Governo, cada um com o seu padrão específico, têm vindo a vulgarizá-la.

 

A Resolução é a nova referência da crónica inaplicabilidade do AO90 e a prova da imperiosa necessidade, no mínimo, da sua suspensão até chegar o “diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação”, assumido como necessário pela própria CPLP na Declaração de Luanda de 30/3/2012. A CPLP não é uma entidade abstracta. Uma das assinaturas que constam desse documento é a de Nuno Crato, ministro da Educação e Ciência da República Portuguesa. A relevante observação de Nuno Pacheco, no PÚBLICO de 22/4/2012 (“Abril escreve-se hoje abril, com caixa baixa, já repararam?”), chegou tarde de mais. As três ocorrências de “Abril” na Resolução são mais uma prova do carácter supérfluo da base XIX, 1.º, b) para a tal “unidade essencial da língua”, pois ninguém na CPLP se apoquentou com a maiúscula inicial.  A base XIX, 1.º, b) é efectivamente desnecessária.

 

Quanto mais o Estado adia a suspensão e o “ajustamento”, mais se prolonga este triste espectáculo da descredibilização da língua portuguesa, da desregrada coexistência de duas grafias no mesmo texto (“sector” e “setor”, como acontece na Resolução) e do paradoxo de o Estado português exigir que “serviços, organismos e entidades” se convertam a uma norma que ele próprio não domina, apesar de a ter criado.

 

2. Vindo “Abril” a talhe de foice, e agradecendo publicamente o mote a Fernando Venâncio e a Ivo Miguel Barroso, recordo uma conjectura de Edite Estrela, Maria José Leitão e Maria Almira Soares (em manual que mencionei no PÚBLICO de 29/2/2012): “qualquer estudo diacrónico pode concluir que não há uma tradição ortográfica na língua portuguesa”. Este postulado merece a minha categórica objecção: existe uma tradição doutrinária e, no que aos nomes dos meses com maiúsculas iniciais diz respeito, a tradição é perceptível e está enraizada nas mais venturosas empresas de sistematização da ortografia portuguesa (Madureira Feijó), no estabelecimento de directrizes para uma norma ortográfica (Bluteau), na fundação da lexicografia moderna do português (Morais Silva) e nos preceitos ortográficos de 1911 e 1945.

 

Esta tradição é interrompida, de forma abrupta, injustificada e oficial, pelo AO90. Apesar de autores do século XIX e do início do século XX usarem minúsculas iniciais nos nomes dos meses, de a publicação de dicionários no século XIX ter sido transferida para Paris e de em França (onde Abril é avril) se encontrarem então os “mais operosos dicionaristas portugueses, em condições de alargado contacto com a lexicografia estrangeira e de inevitáveis influências sobretudo francesas”, como recorda Telmo Verdelho, em Dicionários portugueses, breve história (texto disponível no sítio do Corpus Lexicográfico do Português — U. Aveiro e U. Lisboa), na hora da verdade, não se adoptaram as minúsculas iniciais nos nomes dos meses.

 

Tanto assim é que, apesar de no opúsculo Ortografia Nacional (1904) Gonçalves Viana recorrer às minúsculas iniciais nos nomes dos meses e de o Diário do Governo adoptar essa grafia, a Comissão de 1911 viria a consolidar a tradição, sendo clara no princípio que surge em epígrafe. Não basta dizer-se que a tradição não existe, é preciso provar a sua inexistência. Em português europeu, Abril não é abril. Em português europeu, Abril é Abril. Sempre.


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publicado por fmvalada às 10:51
Conjunto de artigos sobre um instrumento político de má qualidade técnica.
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